O ser humano possui átomos, moléculas e células que sempre se renovam, a exemplo do cabelo. Em média, uma pessoa possui cem mil fios de cabelos, em um ciclo constante de queda e crescimento. Carregamos em nós algo que pode sempre ser usado para ajudar, portanto, que tal “tirar o cabelo para lavar”, ou melhor, doar?
Nesta reportagem do Laboratório, vamos entender o tratamento quimioterápico, o porquê da queda capilar e quais são os seus impactos na saúde mental dos pacientes. Nesse contexto, vamos compreender como a doação de cabelo pode contribuir na questão da autoestima e do bem-estar emocional.
Quimioterapia e queda capilar
Em termos gerais, o câncer é caracterizado pelo crescimento de células anormais, denominadas malignas. Essas células são naturais do próprio organismo, que, no momento de divisão celular, sofrem mutação em seu material genético, tornando-se células cancerígenas.
A quimioterapia é um dos tratamentos utilizados para combater o câncer, e seu principal objetivo é eliminar as células responsáveis pela formação de tumores. É um tratamento que faz uso de medicamentos, denominados quimioterápicos. É por meio da ação deles que as células malignas são destruídas, controladas e inibidas, assim como impedidas de se espalharem para outras partes do organismo (a partir do processo de metástase). Esses medicamentos não atuam somente nas células cancerígenas, mas também nas células saudáveis, pois agem em todo o organismo. Portanto, a quimioterapia é um tratamento sistêmico, ou seja, que reflete em todas as células do corpo e pode ocasionar efeitos colaterais.
Os medicamentos quimioterápicos são aplicados em intervalos de tempo, conhecidos como ciclos. Essa pausa permite que as células saudáveis tenham um período para se recuperar. Por ser um tratamento sistêmico, que atua em especial nas células que se multiplicam com frequência, como é o caso das cancerígenas, as demais que também têm um rápido desenvolvimento são bastante atingidas, a exemplo das responsáveis pelo crescimento do cabelo. Por isso, em geral, o tratamento tem como um dos efeitos colaterais a alopecia, ou seja, a queda capilar.
Hoje, no Brasil, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (INCA), o câncer de mama é o mais incidente entre as mulheres e entre todas as regiões brasileiras. Mas ele pode ser detectado em sua fase inicial, por isso o INCA ressalta que todas as mulheres, independentemente da idade, devem ser estimuladas a conhecer o seu corpo para reconhecer possíveis anormalidades em suas mamas. A maior parte dos cânceres de mama é descoberta pelas próprias mulheres.
Assim, as medidas preventivas, o conhecimento sobre os sinais de alerta e os exames periódicos são importantes recursos para a detecção precoce da doença. Jessica Paes Riba, psicóloga especializada em psico-oncologia pela Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia (SBPO), ressalta que as campanhas de prevenção são essenciais, pois fazem com que as pessoas olhem para si e para o outro e atentam para as campanhas de prevenção, como o Outubro Rosa, são essenciais, pois alertam a importância da detecção precoce do câncer de mama: “É importante estar atento ao próprio corpo”.

O cabelo e seu caráter estético-social
Ao longo da história da humanidade, o cabelo carregou diversas representações simbólicas para além da sua função biológica, variando a partir de cultura, época, religião e da própria expressão pessoal. De acordo com Solange Matilde, psicóloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, o cabelo é visto como uma moldura: “Por meio dele, me enxergo e me identifico, posso me ‘camalear’ cortando, pintando, deixando crescer, entre tantas outras formas de lidar e me transformar”. Mas, além do seu caráter identitário, enraizou-se culturalmente em diversas partes do mundo a ideia de que o cabelo longo na mulher é um símbolo de força e feminilidade. Essa é uma das razões pelas quais assimilar a queda capilar para muitas pessoas não é um processo fácil. Segundo Débora Pieretti, fundadora do Instituto Amor em Mechas, que arrecada cabelos e confecciona perucas e outros acessórios para as mulheres em tratamento quimioterápico, “ é importante que esse estigma seja desmistificado”.
O cabelo carrega consigo questões da esfera íntima de cada indivíduo e pode abalar diretamente a autoestima e o bem-estar emocional. Assim, a queda capilar afeta cada pessoa de maneira singular. De acordo com Solange, quando se pensa em câncer, é comum fazer diversas associações com a morte e o sofrimento, o que já é o suficiente para desestabilizar a vida emocional do paciente. O primeiro impacto é o diagnóstico; com ele vem a notícia da quimioterapia e a possibilidade da perda do cabelo. “Em um mundo onde tudo tem um ‘filtro’ para se mostrar perfeito, a pessoa que sofre essa perda pode ter sua saúde mental abalada”, comenta.
O tratamento quimioterápico é invasivo e, atrelado aos seus efeitos colaterais, gera impactos psicológicos. De acordo com Jessica Riba, receber o diagnóstico é um momento difícil, de mudança na vida e na rotina, e a queda do cabelo afeta muito a pessoa por ser algo que remete a seu próprio rosto. “Isso é um impacto muito grande para o paciente, sobretudo para o seu emocional”, completa. Segundo Elizabeth Lomaski, fundadora da Associação Rapunzel Solidária, alguns pacientes ficam depressivos, e em muitos casos não querem mais sair de casa, passando a viver reclusos.
Durante o processo de diagnóstico, tratamento e recuperação, o bem-estar emocional é um importante aliado. A psiconeuroimunologia explica que a conduta emocional do paciente em relação a uma doença física pode ajudar o organismo a responder positivamente a uma patologia. A Associação dos Amigos do Hospital das Clínicas (Amigos do HC), que arrecada cabelos para a produção de perucas direcionadas para pacientes em tratamento quimioterápico, ressalta que ter uma boa autoestima é essencial para o tratamento e a recuperação.
Como o uso de perucas e outros acessórios podem ajudar?
Para auxiliar no momento da queda capilar, muitas instituições são engajadas na arrecadação de cabelos para a confecção de perucas e outros acessórios que podem contribuir para o bem-estar e a autoestima de pacientes da quimioterapia. Segundo uma das fundadoras da ONG Cabelegria, Mariana Robrahn, existem vários perfis de pacientes. Tem aqueles que se adaptam bem à queda capilar e enfrentam o câncer de uma maneira “empoderada”, preferindo assumir a careca e/ou usar o lenço. E os pacientes que não se sentem bem com a careca, nesse caso a doação da peruca é importante e ajuda nesse resgate da autoestima. “A prioridade é o paciente oncológico estar bem consigo mesmo. É importante para ele ter um tratamento mais leve, independentemente da escolha de usar lenço, peruca ou assumir a careca”, completa.
Além disso, algumas pessoas que perdem o cabelo por conta do tratamento sentem que a careca em si remete à doença. Jessica Riba explica que a perda do cabelo deixa em evidência a questão do câncer, pois está fisicamente exposto de alguma maneira, e isso afeta a saúde mental. Mariana também explica que é preciso entender o que dói no paciente naquele momento; se essa dor for referente à careca, a peruca ajuda a lidar com esse sentimento. “Uma vez que o paciente está bem, ele passa pelo tratamento de uma maneira melhor”, afirma.
A fundadora do Instituto Amor em Mechas, Débora Pieretti, compartilha que, no Outubro Rosa de 2015, foi diagnosticada com câncer de mama, passou por cirurgia, radioterapia e quimioterapia e, como efeito do tratamento, ficou careca. Foi em busca de uma peruca de cabelos naturais e se surpreendeu com o valor, mas, em 2016, participou de um evento para pacientes oncológicos e ganhou uma peruca. Débora relata que quando o cabeleireiro cortou sua franja nesse dia foi muito emocionante, porque ela pôde se enxergar de novo, e isso fez toda a diferença para sua autoestima. “Com isso pensei: quero que outras mulheres tenham essa mesma oportunidade”, afirma. Assim, ela iniciou a criação do instituto.
Além da peruca e dos acessórios, outros recursos podem ajudar. Solange Matilde ressalta que o tratamento muitas vezes é centrado apenas no aspecto físico da saúde do paciente, deixando de lado o emocional. Portanto a psico-oncologia é importante nesse momento, pois trata de diversos aspectos referente a corpo, mente, retorno profissional, família, entre outros. A partir dela, a saúde do paciente é vista como um todo, ajudando-o a criar mecanismos de enfrentamento. “Os históricos emocionais precisam ser considerados, trazendo assim o poder interno do paciente para lidar com a situação”, completa Solange.
Jessica Riba também ressalta que os grupos de apoio são de grande ajuda, a exemplo do grupo de apoio do Hospital São Carlos, que reúne mulheres que estão passando por situações similares. “Assim, elas se sentem mais à vontade em falar e ouvir, é um espaço de troca entre elas, de como amarrar o lenço, onde adquirir uma peruca, isso ajuda muito”, comenta.
A autoestima vai além dos aspectos visíveis e palpáveis; em suma, ela significa “estimar a si mesmo”. Jéssica Riba afirma que faz parte da autoestima estar atento ao corpo e praticar o autocuidado. Nesse sentido, Solange Matilde explica que a autoestima é construída desde o nascimento; ela não se desenvolve de um dia para o outro, é um processo. “Embaixo da peruca ainda há uma mulher careca, portanto é preciso compreender o que afeta e descobrir a força para lidar com tudo isso”, afirma.
A confecção de perucas através da arrecadação de cabelo
As instituições que realizam arrecadações de cabelo produzem perucas a partir dessas doações. Elas podem ser feitas sob medida ou adquiridas já prontas. De acordo com Mariana, o processo de confecção consiste em fazer a triagem dos cabelos doados, separando-os por tipo, cor e comprimento. Em seguida, as mechas vão para a costureira, que as tece para montar a peruca. “Após o tecimento, a peruca é levada para a higienização e está pronta para ser doada”, completa. Para confeccionar uma peruca são necessários em média 600 gramas de cabelo, o equivalente de três a seis doações. Marina também explica que a peruca recebe os mesmos cuidados que a pessoa teria com o seu cabelo: “Pode hidratar, escovar e mudar de cor”.
Para receber a doação de uma peruca por meio de uma instituição, geralmente é necessário fazer um cadastro on-line em seu site oficial. Alguns documentos são solicitados, como o laudo médico e o comprovante de quimioterapia, no caso dos pacientes oncológicos. De acordo com Débora Pieretti, no cadastro do site do Instituto Amor em Mechas é solicitada uma foto de como era o cabelo da pessoa, caso ela deseje ter uma peruca parecida. “É importante que haja uma identificação com a peruca”, afirma.
A ONG Cabelegria, além de possibilitar o pedido de uma peruca pelo site, também possui bancos físicos e móveis de perucas. Mariana explica que o banco físico é um espaço onde há uma exposição de várias perucas, e a pessoa pode escolher a que mais gostar; já o banco móvel é um caminhão que tem funcionamento semelhante ao banco físico. “Com o banco de perucas móvel, torna-se mais prático levar as perucas aos hospitais e a outros estados”, comenta.
![Urna de coleta de doação do Instituto Amor em Mechas e o Banco de Perucas Móvel da ONG Cabelegria. [Imagem: Reprodução/Instagram]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2021/05/Urna-de-doacao-e-banco-movel.png)
Como doar cabelo?
Para doar o cabelo, o processo é bem simples. Pode ser doado qualquer tipo de cabelo, natural ou com química. A única regra para doação, que varia entre as instituições, é a questão do comprimento mínimo da mecha de cabelo – em média, é entre 15 a 20 centímetros. Além disso, é importante deixar os cabelos secarem naturalmente antes de cortá-los para doar, para facilitar a separação na triagem e evitar que mofem durante a armazenagem e o processo de confecção das perucas.
Para cortar a mecha, os cabelos devem ser amarrados em um “rabo de cavalo” com um elástico firme; em seguida, a mecha deve ser colocada em um saco plástico transparente. Para efetivar a doação, os cabelos podem ser enviados por correio para o respectivo endereço da instituição ou levado diretamente a um posto de coleta. Algumas instituições facilitam a doação, por exemplo o Instituto Amor em Mechas, a partir de urnas distribuídas em salões de beleza.
Além da arrecadação de cabelo, muitas instituições recebem doação de acessórios, como lenços, maquiagens e bijuterias. O Instituto Amor em Mechas, por exemplo, realiza a doação do “kit do amor” para os pacientes oncológicos. Segundo Débora Pieretti, o kit é composto por peruca, lenço, colar de pérolas, brincos, batom e lápis de sobrancelha. “Nós arrecadamos, além dos cabelos, lenços novos e usados, maquiagem e bijuterias novas e usadas”, comenta. Mariana enfatiza que ainda existem pessoas que não confiam nas organizações, por isso é recomendável saber mais sobre elas, informar-se ou até ir visitá-las.