por Diego C. Smirne
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Muitas crianças, com sua imaginação fértil e energia inesgotável, criam amigos imaginários para brincar quando estão sozinhas. O pequeno Marty tinha asma, o que o fazia passar boa parte de seus dias solitário, pois sua condição não permitia que acompanhasse a vivacidade dos amiguinhos. O garoto, porém, não recorreu à invenção de um companheiro invisível para lidar com a solidão; certamente não por falta de criatividade, mas talvez por força do destino, sua companhia eram os personagens daquilo que viria a ser sua grande paixão: o cinema. Seus pais, Charles e Catherine Scorsese, descendentes de italianos que trabalhavam como atores nas horas vagas, sempre o levavam para passar horas e horas diante da telona. Assim, Marty, nascido em 17 de novembro de 1942 no Queens, bairro de Nove York, cresceu (embora continue pequeno) e se tornou uma das maiores lendas vivas do cinema mundial, Martin Scorsese.
A família Scorsese mudou-se para o bairro italiano de Little Italy antes mesmo do filho pequeno começar a ir à escola. A educação católica fervorosa dada pelos pais e posteriormente na escola Cardinal Hayes High School fizeram com que o jovem Martin Scorsese pensasse seriamente em se tornar padre. Mas a paixão de infância pelos filmes, para a felicidade dos cinéfilos ao redor do mundo, foi mais forte que sua vocação religiosa. Scorsese formou-se em cinema pela Universidade de Nova York em 1966, lançando no ano seguinte seu primeiro longa-metragem, o preto e branco Quem Bate à Minha Porta (Who’s That Knocking at My Door, 1967). O resto, como dizem, é história.

A OBRA DE SCORSESE é bastante influenciada por sua infância em meio à comunidade ítalo-americana e sob a doutrina católica, sendo estes temas presentes em vários de seus filmes. Muitos deles se passam na cidade onde nasceu e cresceu o diretor. Porém, a Nova York retratada por Scorsese não é, em geral, aquela dos cartões postais a que estamos acostumados, mas uma cidade de subúrbios sombrios e violentos, habitados por prostitutas, traficantes, viciados e mafiosos.
Para dar vida aos personagens deste submundo de crime e pecado, Scorsese realizou ao longo da carreira duradouras e memoráveis parcerias, sendo a primeira e mais célebre delas com o ator também ítalo-americano Robert De Niro. Com ele, o diretor criou várias de suas obras primas, a partir do início dos anos 70.

À época, Scorsese já era amigo de alguns homens que também entrariam para a história do cinema, como Francis Ford Coppola, Steven Spielberg, George Lucas e Brian De Palma, este último o responsável por apresentar De Niro a Scorsese, mudando definitivamente suas carreiras.
A primeira colaboração da dupla foi em Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973), já abordando os temas da criminalidade e da religião, mas o grande estouro veio com Taxi Driver (1976), em que De Niro interpreta o perturbado protagonista Travis Bickle, que trabalha como motorista de táxi nas noites de Nova York, e ao longo da trama mostra seu nojo e desprezo pela imoralidade e impessoalidade das relações humanas, desenvolvendo uma perigosa e doentia obsessão pela mudança de sua realidade monótona e a de algumas pessoas por quem se afeiçoa, como uma jovem prostituta interpretada por Jodie Foster. O final controverso do filme, a fantástica interpretação de De Niro e a forma como a insanidade de Travis é desenrolada no enredo tornam Taxi Driver um clássico, apresentando de forma definitiva o estilo de Scorsese. O longa ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes daquele ano, além de receber quatro indicações ao Oscar, entre elas a de Melhor Filme.
Cena de Taxi Driver, totalmente improvisada por De Niro, que se tornou uma das mais memoráveis da história do cinema:
Quatro anos depois, Touro Indomável (Raging Bull, 1980) receberia oito indicações ao Oscar, entre elas a primeira de Scorsese como Melhor Diretor, e mostraria mais uma vez que Robert De Niro é um dos maiores atores de sua geração, com uma atuação magistral como o boxeador Jake La Motta, que lhe renderia o segundo Oscar da carreira – o primeiro havia sido como Melhor Ator Coadjuvante por sua participação em O Poderoso Chefão: Parte II (The Godfather: Part II, 1974). Para contar a história do polêmico pugilista, Scorsese escolheu filmar em preto e branco devido à quantidade de sangue das muitas cenas de lutas e violência. Usou também de muitas técnicas que se tornariam suas marcas registradas como a câmera lenta e as chamadas tracking shots (quando a filmagem acompanha o movimento dos personagens), enquanto De Niro passou por uma incrível transformação física, engordando 27 kg para a interpretação do final da carreira de La Motta. Outro destaque do filme é a atuação de Joe Pesci como Joey La Motta, irmão do personagem principal.

Pesci voltaria a trabalhar com Scorsese e De Niro em 1990 e ganharia o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), que também conta com atuações exuberantes de Ray Liotta e, claro, o próprio Robert De Niro, pela sexta vez atuando numa produção de Scorsese. Os Bons Companheiros ficou marcado como um dos maiores filmes de máfia já feitos.
Uma amostra da violência e das monstruosas atuações em Os Bons Companheiros:
Ao todo, a dupla Scorsese-De Niro esteve junta em oito filmes. Além dos já citados, New York, New York (1977), famoso pela música tema de mesmo nome, cantada por Frank Sinatra;O Rei da Comédia (The King of Comedy, 1983), uma sátira sobre a mídia e o mundo das celebridades; Cabo do Medo (Cape Fear,1991), refilmagem do thriller Círculo do Medo (1962); e Cassino (Casino, 1995), um filme sobre gangsters ao estilo de Os Bons Companheiros, porém ainda mais violento e sem o mesmo sucesso.
Do início dos anos 2000 para cá, mais um ator descendente de italianos chamou a atenção de Scorsese, e vem realizando colaborações em filmes também grandiosos do diretor: Leonardo DiCaprio. O ator, que os desavisados pensaram ser apenas mais um rostinho bonito no início da carreira, hoje é alvo de campanhas dos muitos admiradores que conquistou para que receba o Oscar, muito em virtude de ótimas atuações em filmes de Scorsese.

O primeiro filme de Scorsese com DiCaprio foi Gangues de Nova York (Gangs of New York, 2002), que se passa numa Nova York de 1840, recebeu dez indicações ao Oscar e rendeu a Scorsese seu primeiro Globo de Ouro como Melhor Diretor. Depois, veio O Aviador (The Aviator, 2004), uma nova cinebiografia dirigida por Scorsese que fez muito sucesso, dessa vez sobre o excêntrico pioneiro da aviação americana Howard Hughes. E então, mais um que se tornaria um clássico sobre o submundo do crime nas ruas dos Estados Unidos, Os Infiltrados (The Departed, 2006).
Após várias indicações, finalmente Scorsese levou para casa o Oscar de Melhor Diretor com Os Infiltrados, que se passa não em Nova York, mas em Boston, e conta com um elenco estelar incluindo ninguém menos que Jack Nicholson, vivendo o mafioso descendente de irlandeses Frank Costello, além de DiCaprio e Matt Damon, o primeiro vivendo um policial infiltrado na máfia de Costello, e o segundo como um enviado do mafioso dentro da polícia.
Uma das melhores cenas de Os Infiltrados, com a atuação, como sempre, destruidora de Jack Nicholson, para azar do braço de DiCaprio; ao fundo, Let It Loose, dos Rolling Stones, favoritos de Scorsese
As atuações de DiCaprio também chamam a atenção no excelente suspense Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) e em O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street,2013), os últimos filmes (até aqui, 2015) da parceria entre ele e Scorsese. Em O Lobo de Wall Street, as marcas registradas do diretor estão quase todas presentes: câmera lenta, tracking shots, imagem congelada, narração ao longo do filme, vários clássicos do blues na trilha sonora, além de muita droga, sexo, e muitos, muitos palavrões: mais precisamente, a palavra fuck é pronunciada 506 vezes no longa, um recorde.
Um pouco da atuação digna de Oscar de DiCaprio e da loucura característica dos filmes de Scorsese em O Lobo de Wall Street:
Mas não só de De Niro e DiCaprio vive Martin Scorsese. Como dito no início, sua vasta obra é muito influenciada por sua infância, e com A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ,1988), filme que reconta a vida de Jesus com um aspecto mais humano do que divino e causou muita polêmica, o diretor dá vida a mais um projeto pessoal, motivado por sua criação católica. Também com os documentários O Último Concerto de Rock (The Last Walz, 1978), um registro da última apresentação do grupo The Band, com diversos convidados especiais; No Direction Home (2005), sobre a vida do revolucionário cantor de folk Bob Dylan; Shine a Light (2006), registro das apresentações dos Rolling Stones (banda muito presente nas trilhas sonoras dos filmes de Scorsese) no Beacon Theater, em Nova York; e George Harrison: Living in the Material World (2011), belíssimo registro da vida do “Quiet Beatle”, o diretor marca sua carreira com uma grande homenagem à música que admira.
Um dos grandes momentos do show-documentário Shine a Light, quando o lendário bluesman Buddy Guy sobe ao palco com os Rolling Stones:
E não poderia faltar, portanto, uma reverência ao amor maior de Marty: o cinema. Ela foi prestada com A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011), filmado com tecnologia 3D e aclamado pela crítica. Também em honra à chamada Sétima Arte, Scorsese fundou, em 1990, A The Film Foundation, organização sem fins lucrativos para preservar e restaurar filmes e, em 2007, a World Cinema Foundation, para estender o serviço da outra fundação ao resto do mundo.

Há várias listas feitas por Martin Scorsese citando suas maiores influências e filmes que ele julga indispensáveis para quem quer entender e fazer cinema disponíveis na internet, como a da imagem acima. Modesto, o diretor nunca cita filmes dirigidos por ele. Porém, com uma carreira recheada de clássicos, homenagens, e com a contribuição feita por ele para preservar a história do cinema, da qual o próprio já faz parte, é certo que Martin Scorsese é um nome imprescindível para os amantes desta arte fascinante.