Em um mundo onde todos desistiram de enfrentar quaisquer problemas e puseram-se a apenas conviver com eles, “escapismo” é a palavra de ordem. Na nova empreitada de Steven Spielberg, Jogador Nº 1 (Ready Player One, 2018), a realidade e o virtual fundem-se em uma união frenética, regada a ação, música e muita cultura pop.
No ano de 2045, o estado americano do Colorado está dividido em profunda desigualdade social — com um extremo de pobreza, anarquia e abandono, e o oposto em ostensiva riqueza, com frias corporações trabalhando para si próprias. Enquanto o lucro e o poder movem este último polo, o primeiro apenas preocupa-se em ter onde viver, o que comer — e algo para se distrair. Parece-lhe familiar?
Nesta distopia que muito tem de atual, um programador de jogos desenvolve um MMORPG (uma modalidade de jogos que envolvem uma enorme quantidade de jogadores, baseado em role playing, o mecanismo em que o jogador assume uma identidade alternativa e vive a história como este personagem) de realidade virtual, o qual nomeia OASIS.
Dentro deste mundo virtual — que compreende diversos outros mundos, alguns caóticos, outros paradisíacos, e ainda alguns muito semelhantes à realidade —, cada um pode ser absolutamente tudo o que quiser; o único porém é que, muito realisticamente, ele necessita ter dinheiro.
Em um sistema meritocrático, o bom jogador pode acumular dinheiro o suficiente para tornar-se quem quiser ser dentro do OASIS — um jovem morador das periferias pode ser e ter mais do que um grande magnata corporativo. Nesta realidade saturada de injustiça e desigualdade, o OASIS não apenas oferece um escape, mas uma oportunidade de crescimento que, a muitos, nunca antes foi dada.

James Halliday (Mark Rylance) é o criador de tudo isto. Com uma intelectualidade quase tão grande quanto sua inabilidade social, Halliday tornou-se possivelmente a figura mais influente da época. Com uma legião de admiradores fanáticos e uma riqueza mais do que farta, a surpresa é geral quando chega o anúncio de seu súbito falecimento.
Assim é deixada por ele a última missão do OASIS: encontrar uma série de easter eggs — objetos, fases ou outros elementos escondidos em um jogo — que determinariam quem receberia o controle total daquele universo, e toda a fortuna (real) deixada por Halliday.
Entra o nosso herói. Wade Watts (Tye Sheridan), um rapaz que mora com sua tia, Alice, e seu desagradável namorado, em uma espécie de trailer, localizado no polo menos rico da cidade. Fortemente desanimado com a vida, Wade passa praticamente seu dia todo dentro do OASIS, onde encarna Parzival, uma versão definitivamente mais extrovertida e deslocada (e com um estiloso penteado platinado) de si.
Há cinco anos, Parzival está em busca do famoso easter egg. Não está sozinho: suas buscas são compartilhadas com seu melhor amigo — fora e dentro do OASIS, embora nunca tenham se visto pessoalmente — Aech, e os menos próximos Daito e Shoto.
Durante uma das tentativas, Parzival encontra Art3mis, uma das avatars (a identidade virtual de cada um dentro do jogo) mais famosas e experientes do jogo. É então que seu modo de abordar a corrida pelos easter eggs, e por vezes a sua própria vida, começam a mudar.
Não parece haver tanto espaço no longa, todavia, para explorar tais personagens. Enquanto Wade tem o típico arco de jornada de herói, os outros — embora Art3mis, em especial, tenha uma interessante história — limitam suas aparições a cenas cômicas ou demonstrações de lealdade à Wade, apresentando habilidades atípicas dentro e fora do jogo — como o talento de Aech para a mecânica, e de Daito para as artes marciais.
Embora apresente uma trama bastante bem desenvolvida, é no detalhe que a obra peca. Intencionalmente ou não, as ações de boa parte dos personagens são bem previsíveis, e sua personalidade, gostos e objetivos são explorados apenas até onde são aplicáveis no arco principal da história. A humanidade de cada personagem sofre por isso.

Ainda assim, de um ritmo eletrizante, que lhe mantém vidrado do início ao fim, Jogador Nº 1 é inteligente ao mesmo tempo que é divertido.
Da construção de um mundo com as desigualdades, as hipocrisias e o escapismo da nossa própria sociedade amplificados, o longa muito bem poderia ser uma instigante crítica social, que expõe nossos próprios defeitos fazendo-nos vê-los como expectadores. No entanto, o modo que é construído é quase descompromissado, com a casualidade de um diretor que não precisa tentar impressionar.
É por isso que, ao passo que consegue ter uma trama bastante complexa e bem desenvolvida, o filme também se permite ser descontraído e escrachado. Seguindo a linearidade que se encontraria em um jogo, passando por uma quest (tarefa a se cumprir) por vez, e alternando momentos frenéticos, como batalhas com armas de alta tecnologia e magia e corridas de carro típicas de videogame, com diálogos simples e de frequente teor humorístico, as 2 horas e 20 minutos que o filme toma passam sem percebermos.
O visual da obra é, também, algo de arrepiar. Com grande parte do enredo se passando dentro do OASIS, o filme é em parte uma animação — uma bela, vibrante e detalhista animação, que impressiona desde a aparência de cada avatar ,cada um com um estilo gráfico diferente, do mais cartunesco ao mais realista, até o design do cenário. Cada diferente mundo que o OASIS compreende é extremamente distinto do próximo, e cada um é produzido com uma riqueza em detalhes surpreendente.
Quando os trechos de animação começam a se misturar com o live-action, os cenários e atores reais, é quase difícil traçar a linha entre eles, tamanha é a fidedignidade do desenho.
Todavia, o que vende a casualidade e o fator entretenimento de Jogador Nº 1 definitivamente são as abundantes referências à cultura pop.
A começar pela trilha sonora; com hits de Twisted Sister, Van Halen e o contemporâneo Depeche Mode, a trilha se mostra tão empolgada quanto o ritmo do próprio longa, e ao ouví-la sentimos a nostalgia, a sátira e a animação que as canções trazem.
No entanto, é na construção do OASIS que a cultura pop toma conta. Halliday inseriu no mundo que criou diversas referências a coisas que gostava em sua infância, e que continuou gostando pelo resto de sua vida. Videogames antigos, super heróis, quadrinhos, filmes clássicos de ficção científica, entre outros, todos fazem aparições frequentes no decorrer do filme. É claro que, se tratando de uma estória ambientada em 2045, certas referências parecem improváveis e anacrônicas, mas continuam divertidas.

Num frenesi de elementos de crítica social, entretenimento e puro prazer visual, Spielberg de alguma forma consegue entregar um longa que é capaz de prender a atenção — e, quem sabe, surpreender — qualquer nicho de fãs de ficção científica. Aqueles que gostam do sci-fi eletrizante, repleto de ação, com certeza a encontrarão; os que preferem histórias complexas e detalhistas, tem um prato cheio; e os mais impopulares que preferem ficções críticas com um compromisso com a realidade social também tem no longa algo de seu agrado.
Talvez outro pecado de Jogador Nº 1 seja, realmente, sua extensão. Aproximando-se dos últimos momentos da trama, o enredo começa a aumentar em previsibilidade, ao mesmo tempo que seu ritmo começa a perder fôlego. Suas cenas finais tem diversos clichês e elementos mal explorados ou desenvolvidos, e acabam por não fazer tanta justiça à todo o restante do longa.
No entanto, definitivamente, o que vai ficar marcado nos espectadores não são as cenas finais, mas a instigante premissa e o palpitante desenvolvimento da história. E, em algum momento, você vai se pegar pensando: “Imagina ter um OASIS na vida real!”
Jogador Nº 1 chega aos cinemas em 29 de março. Enquanto isso, confira o trailer!
Por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com