Por Hellen Indrigo Perez (hellenindrigoperez@usp.br)
A ditadura militar brasileira foi um regime autoritário que teve início em 1964, por meio de um golpe de estado que causou a deposição do então presidente João Goulart. O período, que se estendeu até 1985, centralizou o poder estatal nas mãos de membros das Forças Armadas, e interferiu em diversos aspectos da vida pública.
Uma das principais características do regime foi a manutenção do poder a partir da manipulação dos meios de expressão popular: cenários como o das artes e o da comunicação enfrentaram um processo de censura amparado pelo Ato Institucional nº 5, que filtrava a disseminação de informações segundo os interesses dos governantes da época. Entretanto, para além desse âmbito, o controle do regime também se estendeu a um dos elementos culturais de maior destaque no Brasil: o futebol.
O fracasso entre as glórias
A Seleção Brasileira de futebol masculino vivia tempos de glória no momento em que a ditadura foi instaurada. Após ter vencido a Copa do Mundo em suas duas edições anteriores – nos anos de 1958 e 1962 –, a equipe partiu para a Inglaterra em 1966 com o sonho do tricampeonato. O país estava em festa: após acompanhar os jogadores dando tudo de si em campo e erguendo duas taças consecutivas, o orgulho e a expectativa passaram a tomar conta do povo brasileiro.
Mas o terceiro título não veio naquele ano. Em vez disso, a seleção foi eliminada ainda na fase de grupos, em uma das piores campanhas de sua história. Em entrevista ao Arquibancada, o professor do departamento de História da Universidade de São Paulo, Flávio de Campos, comentou que o baixo desempenho da equipe esteve relacionado à sua desorganização. “A campanha do Brasil foi pífia, um horror. Isso fez com que o regime militar não conseguisse manter aquele sentimento positivo que o futebol gerou para o Brasil em 1958 e 1962”, afirma.
Após o fracasso de 1966, houve um esforço da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), a antecessora da CBF, para organizar uma seleção que pudesse ser vitoriosa na próxima edição da Copa, em 1970. Nesse momento, a comissão técnica passou a contar com pessoas que tinham ligações com as Forças Armadas, especialmente entre os preparadores físicos.
A paixão que moveu um país
Como a memória coletiva pode atestar, a Seleção Brasileira de 1970 foi mais do que vitoriosa: foi também responsável por consolidar o futebol como uma das grandes paixões do país. “Tecnicamente, aquela seleção sobra em campo. Ela praticamente ganha todas as partidas no segundo tempo, então os jogadores estão muito bem preparados fisicamente. Isso vem muito em função da tensão que o regime teve com essa seleção”, aponta o professor.
O início da transmissão televisionada simultânea dos jogos também elevou o patamar da conexão dos torcedores com o esporte, e gerou uma grande identificação popular. A partir desse momento, a propaganda da ditadura “colou” na propaganda da seleção: uma espécie de discurso único passou a existir, e a torcida pelo futebol se tornou próxima da torcida pelo regime. Muitos slogans ufanistas usados no contexto de defesa da ditadura militar eram semelhantes aos utilizados para incentivar a Seleção Brasileira. Assim, o futebol passou a servir como um artifício, juntamente com a euforia econômica, para a construção de uma sensação de otimismo e aprovação do governo.
“Eu diria que a seleção se consolidou como um dos símbolos nacionais. Não um dos oficiais, como o hino e a bandeira, por exemplo, mas é um símbolo oficioso. A camisa amarela se tornou um dos símbolos do Brasil como país”, defende Flávio de Campos. Ainda segundo o professor, essa promoção intensa da propaganda do futebol brasileiro ocorreu, justamente, no momento em que a perseguição política promovida pelo regime se tornou mais acentuada: “É um paradoxo o Brasil ter vivido o Olimpo do futebol e o inferno da repressão no mesmo período”.
O futebol nacional como forma de controle
Além de interferir na atuação do futebol brasileiro no cenário internacional, a influência do regime militar no esporte também foi responsável pela criação do Campeonato Nacional de Clubes, em 1971. Flávio de Campos explica que os torneios realizados anteriormente eram parciais, ou seja, não incluíam necessariamente times vindos de todas as regiões do país. Já o Campeonato Nacional foi projetado para englobar uma maior variedade de clubes, tendo, inclusive, ampliado drasticamente o número de equipes participantes ao longo do tempo.
A iniciativa foi mais uma forma de colocar o futebol a favor da política, ao levar o esporte de maneira demagógica a todos os estados do Brasil. Assim como o apoio nacionalista que foi desenvolvido em torno da seleção, o Campeonato Nacional buscava promover uma integração entre o país por meio da sensação de pertencimento que as torcidas despertavam. Nesse contexto, surgiu o slogan popular “onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional”, que referia-se às intervenções do partido da ditadura em meio à organização do torneio, em uma busca por mascarar as insatisfações contra o governo.
Porém, indo além dos interesses do regime, Campos também destaca que essa integração só ocorreu por conta da infraestrutura: “Só é possível construir um Campeonato Nacional quando se tem um sistema de transporte que permite o deslocamento dos atletas, sem demorar quatro dias para chegar ao destino.” Segundo ele, o estabelecimento do torneio se deve a todo o investimento feito desde a década de 1950, por Juscelino Kubitschek, – que foi continuado durante o período da ditadura militar – para a abertura de rodovias e ampliação da capacidade dos aeroportos.
Nesse contexto, tornou-se igualmente possível o deslocamento de torcedores, que, para isso, precisavam se organizar. “O Campeonato Nacional dá o ponto de partida para o estabelecimento das torcidas organizadas, pois faz surgir a necessidade de acompanhar e proteger os seus torcedores”, explica o professor da USP.
A possibilidade de movimentação também está associada à construção massiva de estádios que ocorreu na época. Flávio de Campos afirma que “nos anos 70, houve a construção de estádios monumentais no Brasil todo, em todas as capitais. Essas obras representaram o momento de boom das grandes empreiteiras, muitas das quais estão envolvidas em escândalos contemporâneos como a Lava Jato, como se fossem algo novo na história do país”. O dinheiro público investido nessas obras, além de destinado a essas empresas, era utilizado para financiar campanhas políticas e alimentar a corrupção de representantes.
Os políticos que vieram dos campos
Um ponto que se articulou no contexto da ditadura, de acordo com Campos, foi a serventia do futebol brasileiro como “a incubadora de dirigentes políticos”. Naquele período, muitos dos dirigentes de clubes alcançaram cargos políticos, o que evidenciava a proximidade entre os cenários. Um dos exemplos foi Laudo Natel, ex-dirigente do São Paulo Futebol Clube, que assumiu o cargo de governador do Estado de São Paulo em dois mandatos – de 1966 a 1967 e de 1971 a 1975.
Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente eleito por voto popular após o fim do regime, também teve uma passagem pelo esporte: foi presidente do Centro Sportivo Alagoano (CSA) entre 1973 e 1974. Ao explicitar esses exemplos, o professor afirma que existia uma “fronteira porosa entre a oligarquia que formou o futebol brasileiro e muitos líderes políticos”.
O limite se aproxima
Apesar de sua popularidade ter sido utilizada a favor de diversos interesses da política nacional, o futebol assumiu uma camada mais profunda ao ser adotado como uma forma de expressão popular. A própria presença dos torcedores nos estádios passou a representar uma espécie de espelho da sociedade: um termo usado por Flávio de Campos é “estádio-nação”, que se refere à capacidade que esses espaços de expressão do futebol adquirem de unir integrantes de classes sociais distintas, mesmo que divididos em setores.
Essa representação se torna ainda mais visível a partir de 1974, quando uma virada passa a ocorrer tanto no futebol quanto no meio político. Nesse período, o milagre econômico brasileiro começa a entrar em decadência: há um aumento da inflação, uma queda do poder aquisitivo, e o petróleo passa por sua primeira crise. É nesse contexto conturbado que se passa a Copa de 1974.
Com uma comissão técnica ainda mais militarizada, a seleção parte para a Alemanha Ocidental buscando repetir o feito de 1970. Porém, há uma quebra de expectativa: o futebol praticado é praticamente sem vida se comparado ao que havia encantado o país quatro anos antes. Apesar de conquistar o quarto lugar, o sentimento popular em relação ao desempenho do time é o de fracasso. Em meio a um cenário de censura e contenção dos movimentos, o povo brasileiro canalizou a sua insatisfação contra a seleção.
Segundo a linha do tempo montada por Campos durante a entrevista, é justamente nesse ano que a discussão sobre a abertura política no regime começa a surgir. Na época, uma ilusão de democracia era mantida por meio de eleições realizadas para alguns cargos – senadores, deputados, vereadores e parte dos prefeitos -, embora dotadas de diversas limitações. Apesar dessa possibilidade, a escassez de informações e a repressão parecia ser tão eficiente até o momento que foi um baque para a ditadura quando, na eleição de 1974, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – partido da oposição – se elegeu para uma porcentagem considerável dos cargos em disputa.
A partir disso, surge uma mudança gradual no cenário brasileiro. A próxima Copa, em 1978, ocorre já no contexto da discussão da lei da anistia para os presos políticos, que foi implementada no ano seguinte. Dessa vez, segundo o professor, o processo que se iniciou em 1970 atinge um ponto máximo: quando vai disputar o torneio – sediado na Argentina, que também enfrentava uma ditadura -, a Seleção Brasileira está sob um comando completamente militarizado. A equipe conquista o terceiro lugar na Copa, mas a euforia gerada pelo futebol já não é o suficiente para conter os ânimos populares. Enquanto a movimentação de manifestações começa a crescer pelo país, o uso da seleção pelo governo militar chega ao seu limite.
Momento de mudança
A equipe que disputou a Copa de 1982 – a última edição que se passa antes da dissolução do regime no Brasil – é definida por Flávio como “a seleção da reconciliação democrática”. Segundo ele, os jogadores que haviam representado a nação em edições anteriores do torneio não se posicionavam politicamente até esse momento. O professor afirma que uma parte dessa atitude era derivada da circulação difusa de informações que ocorria na época: embora os jogadores pudessem ter uma noção do que se passava no país, havia uma guerra de informações que a sociedade brasileira como um todo levou um certo tempo para processar.
Isso mudou em 1982, quando a seleção passou a contar com atletas que se posicionaram ativamente a favor da democracia. Um exemplo entre eles é Sócrates, que também desempenhou um papel importante no movimento que buscava conseguir uma maior democracia dentro do Corinthians. Assim, antes usada a favor do regime, a Seleção Brasileira sofreu uma ressignificação: em 1984, as camisas amarelas – que haviam se tornado uma espécie de símbolo do país -, foram utilizadas por muitos manifestantes durante o movimento das Diretas Já, campanha que lutou pelo início das votações para a presidência.
Somando-se à pluralidade de partidos políticos que começava a crescer, a ditadura fragilizada perdeu o controle sobre esse “símbolo oficioso” que havia sido construído. Lado a lado com o aspecto cultural levantado ao redor do esporte, a luta popular colheu os frutos da resistência. No dia 15 de março de 1985, a posse do presidente José Sarney marcou oficialmente o fim da ditadura militar, e validou a longa caminhada da força coletiva. Paralelamente, mesmo depois de tantos capítulos de história, o futebol ainda continua marcado na alma brasileira.
*Imagem de Capa: Reprodução/Youtube