Por Maria Luiza Negrão (marialuizacnegrao@usp.br)
A produção de alimentos é um dos mais expressivos setores da economia brasileira — o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que quase 200 bilhões de reais, aproximadamente 6,9% do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre de 2024, vem da agropecuária. Apesar disso, muitos cidadãos não têm o que comer ou não têm certeza da próxima refeição. Especialistas avaliam que atividades agropecuárias menos tradicionais exercem um papel importante no combate à insegurança alimentar.
(In)segurança alimentar
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) mensuram a situação da segurança alimentar no Brasil. O estudo, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), classifica um domicílio como em situação de segurança alimentar quando seus moradores têm a garantia de alimentação em quantidade e qualidade adequadas.
Já os graus de insegurança alimentar são classificados, pelo IBGE, da seguinte forma:
- Insegurança leve: ocorre quando há, no domicílio, a preocupação com relação à alimentação no futuro. A qualidade das refeições é comprometida e a família tem estratégias para que cada membro tenha uma quantidade mínima de alimentos;
- Insegurança moderada: os moradores do domicílio, principalmente os adultos, já convivem com a restrição quantitativa dos alimentos;
- Insegurança grave: restrição quantitativa severa, para adultos e crianças, dos alimentos.
Em 2023, segundo a PNAD Contínua, 56,7 milhões de domicílios brasileiros tinham plena segurança alimentar, mas 21,6 milhões de residências foram classificadas com algum grau de insegurança alimentar. Os números indicam que 28% da população não tem certeza se terá o que comer no futuro.
O Governo Federal já criou projetos para a redução da insegurança alimentar no Brasil. Um deles é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que compra de pequenos agricultores para fornecer especificamente merenda nas escolas do ensino público.
Ações de organizações sociais também participam desse combate à fome. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) produz alimentos em seus assentamentos e cria escolas e unidades de saúde para melhorar a qualidade de vida dos acampados. Um dos principais objetivos do grupo é a defesa da reforma agrária, uma questão presente no Brasil desde a época imperial.
A Lei de Terras e a reforma agrária
A primeira legislação feita para regulamentar as propriedades agrícolas foi promulgada em 18 de setembro de 1850 — é a Lei de Terras. Assinada por Dom Pedro II, a medida dispunha “sobre as terras devolutas do Império”. O conceito de terra “devoluta” compreendia aquela, segundo o terceiro artigo da lei, que não era aplicada para uso público do governo e nem era propriedade legítima de algum indivíduo particular.
O primeiro artigo da lei definia a proibição da aquisição de terras “por outro título que não seja o de compra”. Em seguida, era estabelecida a prisão e o pagamento de multas a quem entrasse indevidamente em terras devolutas ou sob a propriedade de outra pessoa.
Valéria de Marcos, professora do Departamento de Geografia Agrária da USP, explica que a Lei de Terras garantiu que os terrenos permanecessem no domínio dos poderosos. “Existia uma previsão de fim da escravidão e os proprietários, os fazendeiros e os senhores de engenho se viram de uma hora para outra diante de uma possibilidade de não ter mais a sua riqueza garantida.” A Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de africanos escravizados em solo brasileiro, foi promulgada em 4 de setembro de 1850 — apenas 14 dias antes da aprovação da Lei de Terras.
Por isso, segundo Valéria, a lei surgiu como uma forma de impedir o acesso livre à terra para que os escravos, quando soltos, não pudessem conseguir posses e produzir. Além disso, imigrantes que chegavam ao Brasil também seriam impossibilitados de trabalhar livremente com a restrição do acesso a terrenos. “A lei garantia que as terras ficassem concentradas nas mãos de quem já as detinha, e aqueles que não tinham propriedades não teriam outra alternativa que não continuar sendo trabalhadores”, afirma Valéria.
“A lei de terras era uma forma de garantir a formação de uma classe trabalhadora e impedir que essas pessoas [escravos e imigrantes] tivessem acesso livre a essas terras.”
Valéria de Marcos, professora de Geografia Agrária
Por causa das consequências da Lei de Terras, surgiram medidas como a reforma agrária. Ela tem como objetivo a redistribuição de terrenos em prol da justiça social e do aumento da produtividade, segundo o Estatuto da Terra. Valéria ressalta que medidas de reforma agrária no Brasil deveriam contemplar, além da redistribuição, o desenvolvimento agrícola — ou seja, não só dar terras para quem não tem, mas também fornecer condições dignas para o desenvolvimento dessas pessoas no espaço rural.
Sobre os avanços da reforma agrária no Brasil, a professora explica que “ninguém quer perder, muito pelo contrário: ele [o grande produtor] quer ganhar cada vez mais”. Por isso, Valéria ressalta que há uma pressão parlamentar “para dificultar que essa reforma efetivamente seja feita porque assim eles garantem essas terras com eles”.
“Nós na cidade precisamos entender que essa também é uma demanda nossa, porque os assentamentos têm muita possibilidade de produzir alimentos de qualidade que cheguem ao mercado a um preço mais baixo”
Valéria de Marcos
Diferentes formas de produzir
Apesar do favorecimento dos grandes latifúndios com a lei de terras, formas menos extensivas e mais sustentáveis de produção alimentar surgiram no Brasil. A agricultura familiar, nesse sentido, é também uma forma de combate à fome. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo, compra de agricultores familiares para pessoas em situação de vulnerabilidade social e insegurança alimentar no geral.
A J.Press entrevistou o professor Carlos Armênio Khatounian, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP). Carlos esclarece que para definir agricultura familiar é necessário considerar tanto o conceito quanto a definição legal vigente no Brasil.
O conceito aceito internacionalmente acerca da agricultura familiar é que esse tipo de produção agrícola é aquela em que a gestão do negócio é tocada por uma família. Ele também desconsidera a contratação de empregados para auxiliar nas atividades ao longo da cadeia produtiva. “Então, por exemplo, os produtores de de uva nas regiões vinícolas francesas são atividades familiares embora, durante a colheita, seja recrutado um número grande de pessoas para ajudar”, conclui Carlos.
Já a lei brasileira delimita quatro requisitos principais para que um empreendimento agrícola seja considerado familiar. Um deles é que a condução do negócio, tal qual o conceito internacional, seja tocada pela família. O segundo é que pelo menos 50% da mão de obra do negócio seja da família — “portanto, se uma exploração doméstica com duas pessoas empregar outras três, o empreendimento já não é familiar, porque tem mais gente fora da família trabalhando do que da própria família”, explica Carlos.
O terceiro requisito mencionado pelo professor é o limite de quatro módulos fiscais para a propriedade. O termo “módulo fiscal” é uma unidade de medida definida por Carlos como “uma quantidade de terra que é capaz de manter economicamente uma família, consideradas as características da agricultura e da economia agrícola naquela região”. O tamanho do módulo em hectares (ha), portanto, varia conforme a região do Brasil.
Por isso, uma propriedade rural de 270 ha em Santarém, no Pará — onde o módulo é de 75 ha —, poderia ser considerada familiar, enquanto uma propriedade de 50 ha em Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo — onde o módulo é de 10 ha —, não poderia ser familiar porque extrapola o limite de quatro módulos fiscais.
A última exigência é que no mínimo 50% da renda familiar venha da agricultura. “Então, um casal de aposentados que recebem juntos uma aposentadoria de 3 mil reais por mês e também levantam 2 mil reais da agricultura já não pode ter uma produção considerada familiar, porque mais de 50% da renda deve ser oriunda da produção agrícola.”
Já com relação à agroecologia, Carlos explica que existem duas conceituações mais comuns. Uma delas se refere à abordagem científica que faz uso de conceitos da área da ecologia — como as relações predador-presa, por exemplo — para estudar a produção agrícola. Existe também um outro uso muito comum para o termo, que caracteriza, segundo Carlos, algo mais assemelhado a um movimento social, com bases ecológicas e também muita preocupação com a sociedade. “Eu sou professor de uma escola de agronomia, então para mim a agroecologia é essa abordagem das áreas de produção agrícola com esse ferramental teórico-metodológico da ecologia”, comenta Carlos.
Mudanças climáticas
As atividades agrícolas exercem um papel essencial para a alimentação da população mas, em geral, são praticadas extensivamente sem grandes preocupações com o impacto ambiental. Segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), aproximadamente 26,5% das emissões brutas de carbono no Brasil, em 2022, eram vindas da agricultura.
Jorge Meza, representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil, afirma que é essencial que os produtores agrícolas adotem medidas de adaptação e mitigação dos impactos das mudanças climáticas. Além disso, Jorge também pontua a importância do limite máximo de 1,5°C proposto pelo Acordo de Paris na COP-21 e de sistemas agroflorestais — capazes de “fazer uma rápida captura e fixação do carbono no solo, mas também combinar com uma intensificação da produção, o que daria maior resiliência aos produtores rurais”.
“Toda atividade produtiva tem um impacto no meio ambiente, o importante é tentar reduzir esse impacto e procurar medidas de compensação.”
Jorge Meza
Jorge afirma também que “é preciso considerar que dois terços das terras agrícolas do planeta estão em um processo de degradação, então nós temos que focar não no desmatamento, mas nos esforços de recuperação”. Isso permitiria, segundo ele, que a humanidade obtenha mais alimentos sem necessariamente agravar o processo de degradação ambiental.
Além disso, ele ressalta a importância de esforços integrados tanto dos produtores, para práticas agrícolas sustentáveis, quanto dos consumidores, pela busca de alimentos mais apropriados e de menor impacto no meio ambiente.