“O senhor sente o peso ou a angústia da influência de Kafka em sua literatura?”, indagou um jornalista.
A pergunta repercutiu no entorno e caiu ao centro do círculo feito de outros jornalistas e professores de letras, onde só se havia posto sentado o velhinho metido em terno cinza de tecido parecido a linho ou gabardina. Já o seu cabelo desertara na maior parte da cabeça e, agora, ele rareava pelas têmporas, todo branco e raso. Era um Roda Viva longínquo.
Entre acenos negativos, ele retrucou: nunca pretendera dialogar conscientemente com o autor tcheco e suas escritas diferiam, e quanto. Disse que subsistia, nos manuscritos de Kafka, um “relato burocrático”. Que, do ponto de vista estilístico, não havia nada que ver. “O que tem talvez que ver é isto: é esta espécie de interrogação do nada, que no fundo é aquilo que eu creio que o Kafka faz. Está consciente de que o que tem ali é nada, que nada é o suficiente para ser visível, que nada é o suficiente para ser consciencializado. Não é O Castelo, não é O Processo, não é A metamorfose…”.
Era um sotaque lusitano inconfundível. Foi a última aparição de José Saramago no programa de entrevistas da TV Cultura, nos idos de 2003. Começa no 1h13min35s.
O português, no entardecer de sua resposta, rememorou parte importante do repertório do escritor, trazendo a campo a memória da tríade kafkiana. São os títulos mais essenciais de Kafka, dono de narrativas enevoadas e fascinantes, acostumadas a ter um protagonista estranho a uma realidade que, nunca em imediato contato com a concretude do mundo, sempre lhe refere um sentido nublado. Para o luso, Nobel em 1998, restava evidente que tal prosa jamais permite mirar a clareza das coisas, nem mesmo daquelas forças cintilantes de discretas manhãs, que delas se destacam e nelas se desfazem. A realidade kafkiana é uma massa amorfa, de silhueta estilhaçada e opaca. A história da transformação, aliás, é possivelmente o relato mais obscuro do que o real possa soar.
Em A metamorfose, Franz Kafka gestou umadas ficções mais poderosas da humanidade. O centenário de 2015 é, por um fato de nascimento, do celebrado livro. É provável que alguns conheçam ou tenham vindo a saber do autor por meio da labiríntica obra. Fugaz recordação: trata-se daquela narrativa rude na qual, logo após desperto do sono, um caixeiro-viajante se apercebe, desde a primeira frase, de sua transfiguração em uma forma não humana: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. A mesma onde o narrador afirmará ainda no início, sem amor: “Não era um sonho”.
A obra ingressou no rol da história literária como expressão do absurdo. Quer dizer, então, que o real kafkiano está alinhado ao impalpável, ao que não pode ser encapsulado ou categorizado numa ordem racional. Também não há espaço, no livro, à linguagem figurativa nem às belas imagens do lirismo. Com afinco a seu “relato burocrático”, como disse Saramago, Kafka não se preocupa com devaneios literários, pondo de escanteio as metáforas e as pretensões poéticas. Sua prosa passa mais pelo crivo da aspereza do que pelo da sensibilidade. A sua condensação do real vem a ser, então, uma ordem de difícil acordo, assombrosa e sem em que se apoiar, carente de qualquer justificativa lógica. De alguma maneira, a intenção é manter o leitor preso num labirinto e naquele nível de relato. A mudança de Samsa, por assim dizer, não é uma fase intermediária ou transitória, mas corresponde a verdade para aquela história e para aquele mundo. E, com a fronte virada para esse mundo, o leitor só pode ver o horizonte narrativo instável e inverossímil cuja a certeza primeira parida na sentença de abertura é a insondável metamorfose.
A transfiguração não é metáfora nem um delírio de Samsa. Assim é porque a escrita cartorial, da qual Kafka é um herdeiro de ofício – um homem que sabia das entranhas das burocracias advocatícias – e através da qual escreve, não se ocupa disso.
Esse status desinteressado do narrador, que atribui à causa fantástica do caixeiro-viajante aspecto de relato comum executado através dum jogo cinematográfico, em que escondem-se os juízos – fazendo apenas algo como “virar a câmera” para constatar que Samsa, antes humano, é agora uma criaturinha com perninhas desgovernadas e uma carapaça rígida e curva -, impede o trânsito de sentido para outros degraus e embaça todo o vagar da história, endireitando elementos do antinatural ou impossível ao que é o banal ou cotidiano.
A vida cotidiana ou ordinária é presente nos manuscritos kafkianos. Relacionando-se com o conteúdo do impossível, contudo, ela dá outra conotação ao ambiente da narrativa: estimula uma carência de entendimento dos personagens em relação ao espantoso, e isto é que faz de Kafka um kafkiano – uma coisa que pode se dizer melhor assim: “o espantoso em Kafka é que o espantoso não espanta” .
Dando-se conta da transformação, a reação de Samsa, desafinada ao contexto irracional por que passa, é o regresso ao sono: “Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices?”. Em seguida, o que ele faz é somente se preocupar com os catálogos, o trem e o atraso para o trabalho. Quando o seu chefe de escritório bate à porta, notando o atraso, Gregor fica passivo: antes, reclamara do ofício – “Que profissão mais cansativa escolhi!” -, mas agora tem de tentar se levantar, em meio às suas pernas confusas, para tentar abrir a porta e dar de cara com seu chefe, que anseia observá-lo. Nessa perspectiva, brilhará forte a animalização do homem por meio da crítica social no céu de desventura kafkiano, como diz o astuto e omisso narrador a um dado momento de solícita, ainda que tímida, opinião: “Era uma criatura do chefe sem espinha dorsal nem discernimento.”
A incapacidade de trabalhar impregna a relação familiar de Samsa, que agora não mais poderá sustentar seus pais e irmã. A preocupação em relação ao sustento da casa figura como um fator fundamental que incute remorso em Gregor, na linha da ideia da mercantilização das relações.
Por outro lado, sobressai, como numa influência de sua vida biográfica, a tirania paterna – muito verificável em O Veredito, em que o pai realiza um julgamento do filho e o sentencia, conto do mesmo ano de A Metamorfose -, já que se sabe que o autor tinha uma relação delicadíssima com o pai – em Carta ao Pai, Kafka escreve mais de 80 páginas perturbadoras que explicitam a dureza da experiência com a figura do patriarca -, e, n’A Metamorfose, o pai ataca Samsa com uma maçã, que lhe atravessa a sua carapaça e lhe fica cravada na carne nua. O afeto pela irmã, que o inseto Samsa possui, também se repara na narrativa, que de forma quase anestésica, com conformidade e pressa, marcha para o abandono completo de Gregor, deixado às traças num quarto empoeirado, obscuro e repleto de mobílias.
A última cena do texto assume o grande alívio da narrativa, que não configura amadurecimento de nenhum de seus personagens: o pai, a mãe e a filha num bonde, os dois primeiros planejando o futuro da sua cria que restou, pois a outra, em segmento imediatamente anterior do texto, simplesmente morre no domicílio – a morte de Samsa, pode-se dizer, é encarada como um reinício familiar, um novo ciclo de vida.
Esta centenária narrativa é clássica porque espantosa, e espantosa pela tremenda falta de apropriação do protagonista ao contexto, um indivíduo alienado em meio ao próprio destino que lhe foi melancolicamente – e ao acaso – selado. Ela impressiona e continuará a impressionar a todos que nela mergulharem, entre linhas discretas que, na falta de palavras, falam mais do que se elas ali houvessem. E assim será, por dias e anos a fio. O próprio Gabriel García Márquez, talvez o maior escritor em língua espanhola do século XX, relatou uma experiência do tipo: “Quando eu li a primeira linha, eu pensei comigo mesmo que não pudesse escrever coisas como aquela. Se eu soubesse daquilo, teria começado a escrever há muito tempo.” O colombiano, criado em Aracataca mas crescido em Barranquilla, portando um generoso bigode e uma prosa elegante e refinada, como sabemos, teve também ali seu destino selado: “Aí, comecei a escrever imediatamente”, disse ele uma vez.
Por Felipe Saturnino
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