Por Beatriz Haddad (bia.haddad@usp.br) e Sarah Kelly (sarahkelly@usp.br)
A Grécia Antiga é considerada o berço do teatro ocidental, que surgiu em meados do século 9 a.C. A arte de representar era de grande popularidade na sociedade e mitologia gregas, com a figura de Dionísio representando o “Deus do Teatro”. A participação em espetáculos teatrais era restrita aos cidadãos da pólis — um grupo minoritário de homens atenienses com mais de 21 anos, proprietários de terra e filhos de pais também atenienses. As mulheres, por não serem consideradas cidadãs gregas, eram proibidas de participar ou sequer se envolver com o universo do teatro.
As personagens femininas eram representadas por homens a partir do uso de máscaras e fantasias. Aquelas que ousassem uma participação nas peças eram marcadas e recebiam má fama diante da sociedade. Maria Marta Baião, atriz e diretora teatral, propõe em sua dissertação Personagens femininas no teatro: perpetuação da ordem patriarcal, que “Ela, a mulher grega, está representada em todas as partes, uma enormidade de imagens e discursos, são meras representações sem posse de palavra”. A psicodramatista ainda acrescenta que a figura feminina grega “está nas narrativas, nas lendas e poesias […] eternas personagens sem protagonismo, expulsa dos palcos, enfim, está em toda parte, mas não está em lugar nenhum.”
“[A mulher grega] está em toda parte, mas não está em lugar nenhum”
Marta Maria Baião
Foi somente a partir do século 16 que esse cenário começou a se transformar, principalmente com o surgimento da Commedia Dell’arte, uma forma de teatro popular criada na Itália. Essa vertente do teatro renascentista continha apresentações consideradas “espontâneas” e realizadas sobre palcos improvisados em ambientes públicos, como praças e ruas. A principal novidade dessa movimentação foi a inclusão — ainda que limitada — da mulher nos palcos. Na França, a figura de Therese Du Parc (depois conhecida como La Champmesle) foi de grande importância, por ser o primeiro nome feminino de que se há registro na história das peças teatrais.
Therese fez parte do elenco da peça Phédre, do poeta Jean Racine e conquistou o papel da personagem principal, tornando-se uma inspiração para ocupação desses espaços por outras mulheres futuramente.
As brasileiras em cena
Os palcos brasileiros permaneceram sem a presença feminina enquanto outras partes do mundo ocidental avançavam para essa universalização. No século 18, a rainha Maria I proibiu até mesmo a representação de papéis femininos, com exceção dos papéis de Santas da igreja católica. Essa proibição durou mais de 20 anos e o objetivo era evitar que os jovens se aproximassem do devaneio e das paixões antes do tempo.
Em meio às repressões, algumas mulheres atuavam e por isso ganhavam fama de prostitutas. A cena brasileira de teatro começou a mudar de fato com a chegada de D. João VI, em 1808, que trouxe diversas atrizes europeias, modernizando a vida cultural do país. Ainda assim, a desigualdade continuou, já que as homenagens oferecidas para as estrangeiras não aconteciam para as brasileiras, que eram obrigadas a se categorizar como prostitutas para tirar carteira de trabalho.
As brasileiras do teatro foram verdadeiras transgressoras dos limites impostos a elas. Com isso, conquistaram seu espaço e hoje exercem diferentes funções ligadas ao teatro, como a direção e roteirização de peças. Bibi Ferreira é um dos destaques das grandes personalidades que marcaram o teatro brasileiro. A atriz, cantora e diretora abriu a própria companhia de teatro em 1944 e foi uma das primeiras mulheres a dirigir peças teatrais em um momento em que elas eram restritas a participarem dos espetáculos apenas como atrizes. Outro grande nome foi o da escritora Maria Clara Machado, que foi uma significativa influência para o teatro infantil e fundou a escola de teatro O Tablado em 1951.
Para mulheres negras e de outras minorias sociais, a luta por espaço no teatro é ainda maior. Até a metade do século passado era comum nos espetáculos o uso de blackface, técnica em que atores e atrizes brancos pintam suas peles de preto e usam elementos que reforçam exageradamente características físicas de pessoas negras.
Plácida dos Santos foi uma das poucas mulheres negras que conseguiu chegar aos palcos no início do século 20, ressignificando o estereotipado papel da “mulata” ao performar em seus próprios termos. Além disso, ela foi a primeira brasileira a levar a dança do maxixe aos palcos franceses. “Em meio à essa construção de estereótipos de gênero e raça, Plácida fez do palco um caminho de afirmação de respeitabilidade”, conta a biógrafa Juliana Pereira em entrevista à Uol.
São muitas as referências de mulheres que abriram o caminho no teatro para as novas gerações. Para mencionar todas elas seriam necessárias várias músicas como Todas as Mulheres do Mundo de Rita Lee. Além das já citadas, Ruth de Souza, Ismênia dos Santos, Dulcina Mynssen de Moraes, Chiquinha Gonzaga e Eugênia Câmara são alguns exemplos de figuras que quebraram paradigmas ao ocupar lugares negados durante séculos às mulheres. Elas enfrentaram o machismo sem nunca abaixar a cabeça, exceto no agradecimento ao público.
“Toda mulher quer ser amada
Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz”
Todas as Mulheres do Mundo, Rita Lee
A luta continua…
As inúmeras transformações ocorridas no universo teatral ao longo dos últimos séculos contribuíram para uma ressignificação do papel da mulher na ocupação de novos espaços, ainda que a luta persista no cotidiano de muitas delas. Maria Marta evidencia em sua tese que “mesmo quando a intenção é fazer considerações positivas, as mesmas aparecem de forma estereotipada em personagens do tipo carinhosa, submissa, abnegada, sempre negando a possibilidade de serem agentes históricos, sempre subjugada a uma ordem, a um modelo permissivo do controle masculino.”
A estereotipização do papel e da figura dessas atrizes ainda é muito presente dentro do meio. Paula Ambar, atriz formada pela Escola Célia Helena, entende que essa questão é recorrente, ainda que de maneira velada: “Isso é sistêmico, trata-se daquele machismo que não vem como uma cara definida, ele está ali sem a gente perceber”. A objetificação dos corpos femininos no teatro também é sentida por muitas, independentemente da máscara com que isso se revela no dia a dia. “Seja com o corpo, seja com um homem, um professor ou um diretor… alguém que passa pela gente de uma maneira invasiva e de um jeito que nos objetifica”, acrescenta Paula.
A atriz Bela Valente conta sobre suas experiências e percepções como uma mulher inserida na indústria. Para ela, é notável a diferença entre a concorrência para mulheres e homens no seu meio artístico: “Tem muito mais mulheres querendo os papéis do que homens, então existe essa questão de que se um homem vai fazer uma audição, ele vai ser chamado de volta só pelo fato de ser homem, porque não tem muitos deles para os papéis masculinos”. Bela ainda enfatiza a influência dos padrões físicos e estéticos na conquista de papéis, considerando essa questão como um dos desafios centrais relacionados às mulheres: “Tem a questão de tipos físicos muito específicos, é uma área em que você está sendo vista”, acrescenta. Ainda que os papéis designados às mulheres estejam diferentes hoje em dia, muitos dos enredos de musicais ou peças mais antigas centralizam esse papel feminino como sendo a mãe, a namorada, amante ou mesmo um objeto de desejo.
“É muito difícil fugir desse sistema [machista] em qualquer cenário do mundo hoje”, opina Paula. Apesar das dificuldades persistentes, o lugar da mulher no teatro tem mudado junto com as transformações da sociedade. O que diferencia o ambiente artístico dos outros espaços é que “lá as coisas são gritadas de um jeito mais igual. Todos querem ser ouvidos e as pessoas minimamente escutam as outras”, conta ela. Para além desse maior espírito democrático, a arte tem um papel de liderar as mudanças na sociedade, na opinião de Bela.
As revolucionárias da atualidade
As conquistas femininas nas peças teatrais não se limitam ao passado, mas acontecem ainda hoje. As revoluções são feitas por histórias reescritas ou novas que empoderam a figura da mulher, sem cair nos frequentes estereótipos impostos às personagens. Quem exemplifica essa prática disruptiva é o grupo de teatro Mal-Amadas – Poética do Desmonte. A companhia dirigida por Marta Maria Baião surgiu em 1992 como resposta artística ao sofrimento de mulheres atendidas na Casa Beth Lobo, o Centro de Referência à Mulher em Situação de Violência Doméstica em Diadema. O feminismo é uma das motivações do coletivo e está presente nas produções ao levantar questionamentos sobre os instrumentos de domesticação da mulher.
Outro destaque recente de peça feita só por mulheres é Hysteria do Grupo XIX de Teatro, que discute a repressão social do patriarcado e os resultados desta nas figuras femininas. A trama retrata a vida de mulheres brasileiras consideradas histéricas e que foram internadas em um hospício no século 19. Geovana Oliveira, também atriz, conta que a própria organização da plateia facilita o diálogo com o público feminino: “Eles separam as mulheres dos homens e preparam monólogos voltados para as mulheres que estão assistindo. Os homens assistem em uma condição de público mesmo, já as mulheres interagem”.
A busca por peças no teatro que abordam o universo feminino muitas vezes esbarra em contradições, como o male gaze. O conceito, que pode ser traduzido para “olhar masculino”, elucida as problemáticas da representação da mulher quando acontecem por uma perspectiva machista. Homens também podem contribuir para a luta feminista, a exemplo das obras Gota d’Água A Seco e Preto, peças dirigidas por homens e lembradas por Paula em entrevista. Entretanto, é importante atentar para a fidelidade da representação feminina.
Para Bela, o segredo para encontrar mais revolucionárias da atualidade está em acompanhar grupos pequenos de teatro, como os coletivos artísticos de faculdades. “Essas peças são as mais revolucionárias que vão fazer você questionar e não só ser um entretenimento”, opina.
Geovana acrescenta que esses artistas independentes são os que mais precisam de apoio: “Como as mulheres ou os artistas em geral vão ter esse direito de emancipação se ainda é tão difícil conseguir leis de incentivo para ter um projeto com independência financeira?”, questiona. Segundo a atriz e bailarina, há vários artistas que caminham para a emancipação e que tornam efetivo o fazer teatral livre, mas que eles ainda carecem de um olhar mais sensível pela sociedade e pelos governos.
Apesar das lutas persistentes, é no teatro, espaço historicamente negado às mulheres, em que muitas delas se empoderam e encontram emancipação. “Foi para mim encontrar um caminho de possibilidade onde a mulher pudesse ser de um lugar igual”, confessa Paula. Além disso, no teatro as mulheres podem ser sujeitos que escrevem suas próprias histórias, reinventando o lugar da mulher na sociedade, como indaga Marta em sua tese:
“Como seriam as mulheres hoje se não tivessem sido interditadas por tantos séculos? Como seria a História do mundo contada pelas mulheres?“