Considerado uma das maiores personalidades do segundo milênio, você verá outra face de da Vinci, pouco comentada e divulgada
Por Caio Santana (caiosantana@usp.br)

Ninguém imaginava que nos arredores da cidade italiana de Florença em 1452, na pequena aldeia de Vinci, nasceria aquele que é considerado por muitos o maior gênio da humanidade: Leonardo da Vinci. O multi-humano que era pintor, escultor, matemático, astrônomo, desenhista, anatomista e mais uma porção de “profissões”. Mas será que ele foi realmente um gênio? O que estava por trás de tanto conhecimento? Ele estava à frente do seu tempo?
Na busca por respostas, o Laboratório procurou especialistas que pudessem falar um pouco mais sobre da Vinci e toda sua influência no que conhecemos hoje. Sendo uma figura que transitava pelas mais diversas áreas, não foi difícil saber o porquê de Leonardo ter sido tão engenhoso em seus trabalhos e invenções.
O Leonardo engenhoso
“É uma característica pessoal dele”, diz o doutor Athelson Bittencourt, que exemplifica: “Como hoje você encontra pessoas que são obsessivas na busca de alguma coisa. Que se dedicam tanto no que fazem. E não digo obsessivo no sentido patológico, é mais no comportamental para fazer tanta coisa. Como uma pessoa em sua vida conseguiu construir e inventar coisas que ainda não são conhecidas? Isso era um traço da personalidade dele. Einstein tinha um comportamento semelhante”, conclui o professor do Departamento de Morfologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Essa peculiaridade permitiu a da Vinci a apresentação de modelos que seriam fundamentais para o que conhecemos hoje em diversos equipamentos. Aviões, submarinos, helicópteros, tanques de guerra, robôs e a própria bicicleta, possuem atribuições de desenhos que Leonardo fez ao longo de sua vida. Sem contar os surpreendentes estudos anatômicos, jamais feitos anteriormente como ele fez.
Contudo, engana-se quem acredita que Leonardo da Vinci foi bem sucedido em sua vida, sendo precursor dos indícios da ciência que conhecemos hoje. O doutor Eduardo Kickhöfel explica: “A princípio, não. Porque Leonardo nunca publicou. Ele não faz parte de uma linha de formação chamada ‘ciência moderna’, de origem em Copérnico depois Galileu, Kepler, Descartes e Newton. Ele deixou muitas coisas inacabadas, pinturas, e em termos práticos ele foi um desastre”.
Eduardo é professor da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sendo considerado um dos maiores conhecedores mundiais do trabalho que Leonardo deixou.
“Ele não foi”
Da Vinci também não era tão conhecido na época no campo do que hoje conhecemos como ciência. Kickhöfel fala que ele era conhecido “como pintor, sim”. Porém, “ele apenas mostrava os manuscritos para pessoas próximas, não morrendo com fama de um filósofo natural. Ele não foi cientista, não havia cientista na época. Ele era um artífice, no sentido de uma pessoa que fazia pinturas e desenhos conseguindo comissões por contratos, que estudava filosofia natural (nossa ciência) e que tinha interesse em matemática”.
Se o “ele não foi cientista” te provocou espanto, prepare-se para desconstruir um Leonardo muito endeusado (não que não devesse).
“Não havia artista na época, Leonardo não foi artista. Artista se entende de um sujeito que pinta para se expressar, por exemplo, Picasso. Esse tipo de personagem é muito recente. Talvez o primeiro artista, nesse sentido, fosse Goya no século 19, faz 200 anos. Leonardo não foi artista, para começo de conversa [essa definição] funciona, mas pensando historicamente, não. O artífice, que é o termo da época, era o sujeito que pintava e esculpia, sempre por encomenda e contratos”, declara Eduardo, preocupado com a reação do repórter.
E não acabou por aí. Para chegarmos ao fato de entender o porquê de Leonardo ter feito coisas extraordinárias, devemos conhecer o contexto daquele período. E se você, caro leitor, acredita em arte no Renascimento, pense nisso: “Não existe arte no Renascimento. Obras de arte nós vemos porque são bonitas, têm características estéticas formais e nos agrada. Isso não existiu no Renascimento. Claro que se percebia qualidade, […] mas não havia obra de arte, não havia artista”, em mais uma declaração que poderia ser polêmica se não fosse dita por alguém que realmente entende do assunto, como Kickhöfel.
“Sem artista, sem obra de arte. Leonardo não foi gênio. Não tinha gênio. Não tinha arte. Gênio é uma categoria do século 18 para cá”, finaliza Eduardo sobre a declaração anterior. O primeiro questionamento apresentado no início do texto é colocado em questão devido à consideração de especialistas, como Eduardo Kickhöfel.

O Renascimento explica tudo
Leonardo da Vinci viveu e produziu suas obras e invenções em pleno Renascimento. Uma época em que se iniciou a valorização da vida ativa, dando importância ao mundo terreno. Saía-se de toda uma privação que a Idade Média trazia, começando a expandir assim, os limites do desconhecido. Suas invenções eram inviáveis para a época, porque era tudo novo, não havia tecnologia existente para fazer as ideias saírem do papel. O humano passou a ser estudado, surge o antropocentrismo. O Homem Vitruviano segue essa lógica da perfeição e centralização humana, como conta Athelson: “A métrica antropocentrista vem da ideia de achar que o homem é o centro do universo”.
Kickhöfel justifica a onda desbravadora do conhecimento. “Ao longo do Renascimento, repetindo o título de um capítulo de um livro do Paolo Grossi, via-se cada vez mais ‘Coisas jamais vistas’, nos céus e na Terra. Isso é algo bem importante ali e Leonardo fez parte desse processo. No sentido de que ele foi um dos primeiros sujeitos a cortar um corpo para descobrir alguma coisa. Ele tem uma importância no Renascimento sim, mas de forma não direta, não linear. Quanto a explorar o desconhecido, essa era uma característica da época.” Ele cita ainda as Grandes Navegações, expedições marítimas realizadas principalmente pela Espanha e Portugal, que aconteceram exatamente nesse período (nos séculos 15 e 16).
Mais uma negativa para Leonardo. Quando perguntado se ele seria um “faz tudo”, no sentido de ser um homem universal com uma mente brilhante, Eduardo falou: “Não. Essa ideia de homem universal é um exagero. Ele teve interesse por pinturas, esculturas, arquitetura, filosofia natural (seria a nossa ciência), óptica, anatomia, mecânica teórica e matemática. Ele não teve interesse em questões práticas, éticas, morais nem metafísicas. Teve interesse por setores dos saberes da época. Ele fazia muita coisa, mas o termo ‘homem universal’, se fosse para usar essa expressão, serve para um sujeito chamado Leon Battista Alberti, um pouco anterior a Leonardo, foi humanista, arquiteto, escritor…”.
“Ele fazia muita coisa” se deve ao já falado traço vinciniano. “Leonardo da Vinci se dedicava nas suas obras e usava a sua habilidade de juntar as várias áreas do conhecimento, e isso te permite ir mais longe. Ao entender física, matemática, geometria, você consegue construir um equipamento mais fácil do que se você entender somente uma área”, fala Bittencourt.

Esqueça o homem além do tempo e a censura religiosa
“Eu não diria que ele estava além do seu tempo. Veja, muitas das máquinas que ele desenhou já existiam. Sim, ele inovou em algumas, mas fazia parte do contexto da época. Falar fora do seu tempo é exagerar demais. Ele era uma pessoa de grande engenho em termos de pintura, um marco no desenho e para o século 15, é um divisor de águas. Mas tudo isso é enquadrável no seu tempo, inclusive com muitas características bem antigas, não modernas”, afirma Eduardo Kickhöfel.
Parece difícil acreditar nessas afirmações, afinal foram muitas coisas produzidas, pinturas, escritos. Falando em escritos, são conhecidos cerca de seis mil páginas e estima-se que isso seja apenas um terço do que ele fez de fato. E o Laboratório teve acesso a uma pequena parte digitalizada, disponibilizada e traduzida pelo professor Eduardo. É admirável ver o quão preciso da Vinci era, com desenhos super realistas. Apenas com o material existente, o professor Athelson declara ser muito impressionante o que da Vinci fez. Imagine o tanto de coisas, máquinas, equipamentos e avanços teríamos se tivéssemos acesso a esses fólios (escrito em folha) perdidos.
Para quem acredita que a Igreja (Católica), proibiu e advertiu muitos trabalhos de Leonardo, o professor da Unifesp apenas dá uma suposta posição da Igreja sobre os trabalhos anatômicos. “De Leonardo talvez tenha acontecido que nos fólios em anatomia, há menções a abreviadores de trabalhos. Pode ser no sentido de quem fazia compilações de outros livros não fazia experiências, mas pode ser também de que se referia ao fato de que ele foi proibido, por volta de 1515, de fazer anatomias. Primeiramente, a Igreja de Roma não proibia dissecções anatômicas, como se diz por aí. Se aconteceu com Leonardo em 1515, foi devido a uma condenação de Pomponazzi, um filósofo que escreveu um livro controverso chamado ‘Mortalidade da alma’. É uma questão que vinha da Idade Média, se a alma era imortal ou não. Para um cristão isso é inaceitável e o livro foi condenado. Nessa época, Leonardo estava investigando o feto e nos textos dele ele menciona a alma. E é possível que ele tenha sido denunciado por alguém, por esse tema bem específico. Talvez, porque nem é certo isso”.

Destaque para a curiosidade
“O grande destaque de Leonardo da Vinci foi a capacidade tão marcante na obra dele, que era essa pluralidade que ele tinha”, são as palavras do professor da Ufes, Athelson.
Leonardo faleceu na França, em 1519. Ele jamais imaginaria que seria considerado o maior humano já existente, mesmo que parte de seus estudiosos negue essa que é uma verdade para muitos.

Quando perguntado se da Vinci era o maior gênio da história, Eduardo Kickhöfel disse: “Eu diria que ele não é nem um gênio. Gênio é uma categoria do século 18, nos termos da época ele tinha grande engenho, entenda-se talento, e grande arte, entenda-se disciplina para fazer coisas. Arte é genérico de qualquer disciplina, mais ou menos ‘artística-científica’. Era um homem de grande engenho arte, um dos grandes pintores e desenhista já existentes. Um grande curioso, sem dúvidas”.
Está aí a prova de que não é um consenso a genialidade vinciniana. Olhar a curiosidade como ponto fundamental para novas descobertas pode não fazer alguém ser tão famoso. Leonardo gostava de mistérios, fez obras muito conhecidas, como “A Última Ceia”, “A Virgem das Rochas”, “Mona Lisa” e o “Homem Vitruviano”, que possuem um certo enigma a ser decifrado, para alguns. Talvez ele tenha feito isso de propósito, para despertar a curiosidade nos humanos seguintes à sua morte.
Afinal, ele também era muito curioso. O texto será finalizado com as próprias palavras do Leonardo da Vinci, encontradas no fólio 155 recto do Codice Arundel, que provam essa ambição pela curiosidade, com ele relatando um episódio em que se encontra diante de uma caverna:
“E impelido pela minha ávida vontade, imaginando ver a grande abundância das várias e estranhas formas criadas pela artificiosa natureza, enredado pelos sombrios rochedos cheguei à entrada de uma grande caverna, diante da qual permaneci tão estupefato quanto ignorante de tais coisas, com as costas curvadas em arco e a mão cansada e firme sobre o joelho, e procurei, com a mão direita, fazer sombra aos olhos comprimidos, curvando-me cá e lá, para ver se conseguia discernir alguma coisa lá dentro; e isso me era impedido pela grande escuridão que lá dentro existia. Assim permanecendo, subitamente brotaram em mim duas coisas, medo e desejo: medo da ameaçadora e escura caverna, desejo de ver se lá dentro existia algo miraculoso”.