Europa, século 15
Embora seja associada a uma história recente e à modernidade, eu existo há muito tempo. Muito tempo. Durante a antiguidade, eu já era estudada e exercida no Egito, contando com cirurgias de catarata e especialistas em diversas das minhas áreas. Me desenvolvi bastante entre os períodos grego e romano, infância muito feliz, cheia de novidades. Mas a adolescência vem para todos, e não é fácil controlar a rebeldia. Então, a Idade Média está sendo difícil. Em casa as coisas não estão lá muito bem, e meu pai, a ciência, está um pouco ausente do nosso dia a dia. A sociedade também está se transformando, então sabe como é, sem estabilidade e com gente gritando para todo lado. Pois é, confusão.
A história começa comigo nos mosteiros, em grande parte do tempo. Era lá onde eu era estudada e onde fiquei durante toda a Alta Idade Média. Passei por uma crise de identidade nesse primeiro período, já que a tradição hipocrático-galênica, largamente utilizada no Império Romano como a minha base, foi fragmentada. Fora dos monastérios uns primos meus tentavam manter a família viva, com curadores, feiticeiros e homens santos que aplicavam curas diversas na população geral.
Lá para o século 7, a influência árabe na Europa acabou refletindo em mim. Seus hospitais, chamados bimaristan (“casa dos doentes”, em persa), eram muito mais higiênicos, limpos e organizados, e alguns eram até divididos em especialidades. Os profissionais árabes que me exerciam adotaram as doutrinas clássicas greco-romanas, mas também possuíam formação que me mescla com filosofia.
Agora, na Baixa Idade Média, a tradição hipocrático-galênica está sendo recuperada e os meus estudos vão se concentrando em minhas faculdades ou universidades. De maneira geral, é uma formação acessível a pouquíssimas pessoas e que, dependendo do lugar, leva em torno de sete anos. Os estudos se baseiam na leitura de Galeno, Aristóteles e Avicena, e chegam a ser mais práticos em universidades germânicas, mas no geral são bem teóricos.
Quando terminam os estudos e saem da universidade, aqueles que me estudaram ocupam o topo da hierarquia das artes de curar. Logo abaixo deles estão os cirurgiões, que se formam, na maior parte dos casos, nas guildas ou corporações de ofício, onde ingressam como aprendizes até tornarem-se profissionais formados. Por último — mas ainda importantes — estão os empíricos, que são os barbeiros, sangradores, curandeiros e feiticeiros. Sua formação se dá através da cultura oral popular, e eles são os mais presentes no cotidiano da população.
A minha prática atualmente costuma evitar procedimentos invasivos, focando numa abordagem de caráter preventivo, com prescrição de dietas específicas e infusões herbais. Basicamente, minha função é interpretar sinais e sintomas das enfermidades para recomendar o tratamento necessário. Cá entre nós, quem coloca mais a “mão na massa” são os cirurgiões e empíricos, manipulando os corpos dos doentes e aplicando medicamentos e técnicas. Sangrias e vomitórios, porém, são conhecidas técnicas empregadas nos tratamentos atuais.
Um dos maiores avanços obtidos nos últimos anos foi a minha saída dos mosteiros. A criação das universidades de medicina foi muito importante para que os conhecimentos sobre mim não ficassem mais tão restritos, o que contribuiu muito para uma maior circulação de ideias e debates sobre minha prática.
Algo muito comum de acontecer por esses dias é a circulação de histórias sobre curas miraculosas, além da associação de alguns santos católicos com a cura de algumas doenças específicas, resultando em muitas orações, promessas e peregrinações por parte dos devotos. Na verdade, eu mesma — com formação acadêmica ou não — possuo e me utilizo de muitos elementos mágicos e religiosos, como amuletos, rituais e remédios miraculosos. Esses fazem parte das minhas próprias concepções nesse período.
Um tabu enfrentado pelos meus praticantes é o próprio corpo humano. A cultura cristã do Ocidente herdou do Helenismo a ideia de inviolabilidade do corpo humano. A questão é que o corpo do Homem pertence a Deus, e portanto, não pode ser aberto como objeto de mera curiosidade. Assim, os estudos de anatomia acabam sendo feitos em animais que acreditamos terem fisiologia semelhante à do ser humano, como porcos, macacos e ovelhas.
Até existiram algumas dissecações realizadas em corpos humanos, mas foram poucas. (P.S.: É 1482 e o Papa Sisto IV permitiu que fossem realizadas dissecações em corpos de criminosos executados que tivessem sido submetidos a um sepultamento cristão!)
A minha relação com a Igreja, embora muitos pensem o contrário, é muito boa. Eu vivi muito tempo dentro dos mosteiros e compartilho muitas crenças cristãs, o que facilita a boa convivência. Além disso, os meus estudos acadêmicos estão em universidades, que são em grande parte controladas pelos clérigos. Agora os empíricos, que praticam as artes de curar, têm práticas vistas como afrontas à ortodoxia católica em alguns casos, chegando a serem acusados de bruxaria.
Porém, a relação com a bruxaria não é tão simples: as perseguições aos supostos bruxos e feiticeiros não são motivadas apenas por convicções religiosas, estando relacionadas também a uma disputa por mercado de trabalho, já que meus praticantes querem expandir seus clientes, e o povo está muito mais acostumado e próximo da tradição oral familiar praticada pelos curandeiros, feiticeiros, sangradores e barbeiros.
Agora preciso ir. A Idade Moderna já está quase chegando, é hora de me preparar. Até mais.
Contribuíram para a matéria o doutor em História e Ciências da Saúde Ricardo Freitas e o artigo do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), da revista Ser Médico, História da Medicina, assinado por Lybio Martire Junior, médico, professor de medicina em Minas Gerais e ex-presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina.
Pingback: Medicina indígena nas Américas e contato europeu - Jornalismo Júnior
Pingback: Querido diário, eu sou a medicina medieval – Clube do Jornalismo