Custódio (Marco Ricca) é um funcionário público que convive com promessas de bonificações que nunca se realizam. Do alto de um prédio de classe média em Copacabana, ele encara um cadáver jogado na calçada. Em meio a essa cena, discute as contas de mercado com sua esposa, Nena (Drica Moraes) – que reclama dos gastos aumentados desde que seu filho, Luca (Chay Suede) aderiu ao veganismo.
Quem olha para Custódio, funcionário que não ascende na carreira e pega o mesmo ônibus para o trabalho há vinte anos, não imagina que assumiu a figura de “Manguari Pistolão” na juventude.
Luca, de 17 anos, é quase uma figura caricata do militante “cirandeiro”. Adere ao veganismo e ao anticapitalismo, pinta as unhas e só aparece em cena vestindo saias. Estudante bolsista de um colégio tradicional de classe média alta, ele e mais alunos são impedidos de entrar na escola para fazer uma prova. O motivo? Suas roupas, que desafiam os moldes conservadores da instituição. A resposta dos estudantes é ocupar o colégio. A partir disso, as diferenças ideológicas e geracionais entre pai e filho se acentuam até o insuportável.
A falta de comunicação e as diferenças entre duas épocas tão distintas são o motor de Rasga Coração, adaptação da peça homônima de Vianninha e com direção de Jorge Furtado. Escrita nos anos 1970, ganha uma cara nova sem perder a base principal do enredo.
A história se alterna entre dois momentos. Primeiro, a juventude de Custódio. Ao seu lado, estão o artista boêmio e sem limites (ou emprego), Lorde Bundinha, e Camargo Velho, companheiro de ações revolucionárias.
Manguari é um filho de militar que luta pela revolução: sua vida gira em torno de reivindicações na imprensa, pichações, esconder-se de militares, reuniões de sindicatos. Porém, tragédias derivadas desse modo de vida o fizeram abandonar o movimento e viver a estabilidade do casamento e serviço público.

O “hoje” traz um tipo novo de militante. O que é reivindicado — e como agem — muda totalmente. O discurso vegano ativista, hippie repaginado, vai de encontro aos valores dos pais, que não sabem como lidar com essas mudanças repentinas. Mas o filho também, por imaturidade, não compreende os próprios atos nem tenta se comunicar com eles.
As dificuldades de conciliação se apertam ao longo que a história se desenrola. Jorge Furtado concilia muito bem a progressão dos conflitos e a tensão que cresce dentro do apartamento, espaço principal da época “nova”. O desenvolvimento da narrativa é muito natural: pequenos estresses vão, aos poucos, se acumulando até o clímax.
Lidar com duas épocas e conectá-las de forma harmoniosa pode ser um desafio na produção cinematográfica. Mas a direção balanceia muito bem os dois mundos. Os paralelos traçados entre passado e presente, gerando a comparação, trazem sentido às ações de Custódio e Nena. As memórias aparecem no momento exato e constroem um quebra-cabeça sobre a personalidade e atitudes dos dois. Suas feridas expostas os elevam para muito mais que um casal qualquer de classe média e geram empatia no espectador.
Da mesma forma, acompanhar o relacionamento de Luca e sua namorada, Mil (Luisa Arraes), nos ajuda a compreender o que acontece em sua cabeça. Na transição para a idade adulta, ele procura a identidade própria, fugindo do conservador que enxerga em seus pais (embora o filme demonstre que a formação de sua família foi muito mais complexa e complicada do que ele imagina). É um idealista. Em um ambiente confortável o suficiente para explorar novas experiências sem preocupações financeiras, ele aceita todas as transgressões e indignações que lhe parecem justas. Porém, falta maturidade e conhecimento de mundo para abarcar em algumas delas.
A falta de consciência de Luca e Mil os transforma em personagens levemente irritantes. Fica transparente esse traço no diálogo entre Luca e Talita (Cinândrea Guterres), a única mulher negra do filme e moradora da periferia. Enquanto Luca recusa-se a fazer faculdade em nome da declarada liberdade, ela comenta o sonho de entrar na universidade.
A direção de arte acerta na escolha dos tons mais quentes para o passado – mais caótico, porém agitado – e o futuro cinza que o casal presencia. Os closes nos rostos dos personagens, em planos fechados, são responsáveis por uma aproximação do espectador com as emoções de cada um.

A marca das interpretações
Os personagens são o ponto alto da história. São reais, palpáveis – ao mesmo tempo, cada um com uma identidade única. Representam fielmente pessoas do cotidiano. Mais um acerto da adaptação e dos atores.
No presente, todos são movidos por um desconforto constante. Os personagens do passado são leves, mesmo em meio às dificuldades. João Pedro Zappa, que interpreta Manguari jovem, e Anderson Gomes, que faz Camargo Velho, rendem boas cenas. O destaque é Bundinha, o boêmio quebrado e usuários de todas as drogas possíveis. A transgressão total e a excentricidade trazem humor para a narrativa, fruto da ótima atuação de George Sauma.
Em coletiva de imprensa, os atores e o diretor comentaram sobre o processo de criação e evolução dos personagens principais:
Custódio se vê na obrigação de tomar as mesmas atitudes de seu pai, que o fizeram sofrer no passado. Ele convive com suas lembranças a todo tempo, materializadas na própria figura do falecido Bundinha. Seus atos duros em relação à sua família foram discutidos durante a coletiva. Para o elenco, é “um homem que teve frustrações e tenta se reconstruir no filho”.
Drica Moraes comentou sobre sua personagem, Nena. Diferente da peça, a mãe de família é muito mais participativa em sua versão de cinema. “Eu a vejo como uma mulher que perdeu sua identidade, que vai envelhecendo mal. É muito presa ao filho e à casa, de uma forma difícil”. Para o diretor, Drica transformou Nena em uma mulher “inquieta”, renovando a personagem.
O novo Luca foi um trabalho conjunto de ator-direção. Para Chay Suede, foi preciso adaptá-lo a um adolescente muito mais atualizado que aquele de 40 anos atrás. “Preciso repensar esse jovem, que hoje tem demandas volumosas. Ele precisa ter contato com política de alguma maneira”.

“A peça está ficando atual de novo”
A peça Rasga Coração é original de Oduvaldo Vianna Filho, o “Vianninha” – descrito por Jorge Furtado como um “verdadeiro comunista”. No mesmo evento, o diretor comenta o processo de adaptação para os novos tempos.
“O filme tem duas épocas: 1979 e 2013. Atualizamos a linguagem, mas apenas uma cena foi inventada”. Para o diretor, a peça ainda é muito contemporânea. “Quis há dez anos fazer a peça, mas eu pensei: ‘Não faz o menor sentido, com um governo dando certo. Mas, em 2013, falei: ‘A peça está ficando atual de novo, os jovens na rua”.
Na obra original, Luca é um hippie em plena década de 1970 e pouco preocupado com política, filho de um homem que viveu os anos 50 ao máximo. Para interpretá-lo como um jovem de 2013 em plena explosão de manifestações, foi preciso realizar algumas adaptações.
O cabelo longo, que lhe traria com problemas com a escola na peça, é trocado pelas saias, maquiagem e unhas pintadas. Porém, as mudanças são maiores do que apenas a aparência do personagem: ele foi reescrito mais politizado, interessado no que acontece no mundo. “A impressão que eu tenho é que o jovem de hoje é muito mais informado, tem mais acesso à informação”, explica Furtado.
As diferenças ficam muito marcadas nos detalhes, no subjetivo. As drogas usadas, a forma de se rebelar, o comportamento dos pais, as diferenças no namoro. Furtado comenta que houve grande “preocupação de fazer as duas épocas na sonoplastia, cores, nas atitudes [dos personagens]”.
O diretor termina sua fala comentando sobre a relação pai-filho e a renovação dos valores explicitada no filme. “Eles não se entendem, mais ainda é uma relação amorosa. Cada geração aprende de novo, por si só.”
Rasga Coração entra hoje em cartaz nos cinemas pelo Brasil. Confira o trailer!
https://www.youtube.com/watch?v=B0mFpOM7MC8
por Yasmin Oliveira
yasmin.oliveirac12@usp.br