Devem ser poucos os brasileiros que não ouviram falar de Santos Dumont, o pai da aviação. Um dos grandes orgulhos nacionais, o inventor Alberto Santos Dumont foi, por muito tempo, uma das pessoas mais famosas do mundo, e considerado uma das mentes mais brilhantes do período. O que poucos sabem, na verdade, é que Dumont, em meio a uma vida de glórias e avanços, encontrou um fim trágico. Saiba mais sobre a trajetória desse ícone nacional já estampado até mesmo na nota de 10 mil cruzeiros nesta reportagem do Laboratório.
Nascimento e infância
Filho de Henrique Dumont e Francisca de Paula Santos, Alberto Santos Dumont nasceu em de 20 de julho de 1873 no sítio de Cabangu em uma cidade localizada no interior de Minas Gerais, na época chamada de Palmira, hoje nomeada Santos Dumont. Porém, logo mudou-se para Ribeirão Preto, interior de São Paulo, porque seu pai adquiriu uma fazenda voltada para o cultivo de café na região. Na cafeicultura, a fortuna da família, que já era grande, expandiu.
Desde a infância, o aviador mostrou ser uma pessoa inventiva e com interesse em máquinas. Já aos doze anos de idade, ocupava o lugar do maquinista das locomotivas que atravessavam os cafeeiros da fazenda. Construía pipas, arapucas, telefones de taquara e outros objetos, além de passar o seu tempo nas usinas, observando e tentando entender o funcionamento das ferramentas.
“As primeiras lições que recebi de aeronáutica foram-me dadas pelo grande visionário: Júlio Verne”, escreve Santos Dumont em seu livro O que eu vi, o que nós veremos. Quando criança, o inventor tinha grande fascínio pelo autor francês, cujas obras eram carregadas de descrições de máquinas capazes de cumprir o que na época ainda não era considerado possível, como, por exemplo, fazer o homem voar em aeroplanos mais pesados que o ar.
Em 1891, Santos Dumont mudou-se para a França junto com sua família, pois um acidente fez com que seu pai ficasse hemiplégico — alteração neurológica que paralisa um lado do corpo — e vendesse a fazenda para tratar de sua saúde na Europa. Ao descobrir que não possuía tratamento possível para a doença, o pai de Dumont voltou para o Brasil, emancipou o filho e repartiu a fortuna entre ele e os seus irmãos.
Sem preocupações financeiras e com a benção do pai, Santos Dumont foi para Paris, onde aprofundou seus conhecimentos de mecânica, física e química e desenvolveu um interesse especial pelo motor de combustão interna, fato que contribuiria para projetos como o balão, o dirigível e o avião.
O Balão “Brasil”
Em 4 de julho de 1989, o céu parisiense tornou-se palco para a mostra do primeiro balão projetado por Alberto Santos Dumont. Pilotado pelo próprio criador, o balão intitulado “Brésil” — Brasil em francês — é conhecido como o menor balão feito para voar com uma pessoa a bordo. Durante a construção, Dumont foi questionado sobre a capacidade de voo do projeto, por conta de suas características incomuns — 113 metros cúbicos, invólucro de seda japonesa, mais leve que a chinesa usada normalmente. Mas apesar da descrença de muitos, o balão ganhou altura.
Dumont projetou outros balões, entretanto, o inventor não estava satisfeito com uma aeronave que dependia do ar para se locomover: queria desenvolver uma que pudesse ser manobrada e, simultaneamente a balonagem, ele passou a trabalhar para que isso fosse possível.
Os dirigíveis
Apesar de ser conhecido como “o pai da aviação”, os feitos de Santos Dumont não se limitam a isso, ele também é creditado na criação do dirigível. O francês Henry Giffard já havia construído um balão dirigível movido por uma máquina a vapor em 1852, mas o controle da máquina era bem sucedido apenas em condições climáticas muito específicas. Santos Dumont se tornou o primeiro a mostrar que era possível dirigir em voos controlados por meio de um motor movido a gasolina.
“O motor de combustão parecia uma coisa perigosa, mas Santos Dumont tinha convicção de que teria que ser com um motor de combustão interna a gasolina, porque permitia a maior relação entre potência e peso”, explica o professor de engenharia mecânica da Universidade de São Paulo (USP), Marcello Faraco de Medeiros.
Com diferentes níveis de sucessos e fracassos, alguns resultando em acidentes graves, o inventor criou diversos modelos de dirigíveis, dentre os quais se destacam:
Nº1: Para prevenir uma possível explosão que a combinação de hidrogênio — gás inflamável utilizado para manter o balão no ar — e um motor de combustão geraria, Dumont aumentou as cordas de sustentação, a fim de afastar o motor do invólucro (a cobertura do balão), virou o cano de escapamento para baixo e colocou as válvulas de hidrogênio na extremidade de trás.
A primeira tentativa de voar com a máquina não foi bem sucedida. Por voar contra o vento, o aparelho foi arrastado pelas correntes de ar e prendeu nos galhos de uma árvore. Na segunda tentativa, em 20 de novembro de 1898, voando a favor dos ventos, o primeiro dirigível com motor a gasolina subiu aos ares. Porém, o invólucro se dobrou em dois devido à contração do hidrogênio em baixas camadas atmosféricas.
Nº 5: Por duas vezes, Dumont usou esse dirigível para tentar vencer o prêmio Deutsch, que determinava que quem conseguisse subir do parque de St. Cloud, contornar a Torre Eiffel por seus próprios meios sem tocar o solo ao longo do percurso e voltasse para o ponto de partida em menos de 30 minutos ganharia 50 mil francos.
O inventor sofreu acidentes em ambas as vezes e não conseguiu o prêmio em nenhuma. A segunda tentativa resultou no acidente mais grave: enquanto fazia o percurso determinado, o ar escapou do dirigível, uma das hélices cortou uma das cordas de sustentação, e o inventor se viu obrigado a desligar o motor da máquina, o que, obviamente, resultou na perda de altitude da aeronave e no estouro do invólucro da máquina. Santos Dumont perdeu a consciência, acordou emaranhado nas cordas e ficou esperando o resgate do corpo de bombeiros com os restos do dirigível pendurados no alto do Hôtels du Trocadéro.
“Assim que foi resgatado pelos bombeiros, começou a explicar como era para tirar o motor, porque ele não queria perder toda a estrutura, queria aproveitar para o próximo dirigível”, diz o professor.
Nº 6: Com esse dirigível, Dumont mostrou para o mundo o maior experimento bem sucedido de um balão automóvel, sendo um dos maiores feitos do inventor antes do 14-Bis. O novo modelo sofreu algumas alterações e foi testado muitas vezes para prevenir que acidentes como os das outras tentativas não se repetissem. Finalmente, em 19 de outubro de 1901, às 14:42, Dumont iniciou o voo que o faria contornar a Torre Eiffel e o traria o almejado prêmio Deutsch.
Nº 9: Em 1903, Santos Dumont constrói o dirigível que seria um dos mais famosos de Paris, o Baladeuse. Alberto usava a aeronave como um veículo de passeios, sobrevoando a cidade para visitar amigos e estacionando-a em frente a restaurantes para tomar chá. Foi o primeiro dirigível que Dumont permitiu que outra pessoa comandasse, a cubana Aida d’Acosta, que se tornou a primeira mulher a pilotar uma aeronave. Também transportou uma criança pela primeira vez, o menino Clarkson Potter.
No dia 14 de julho, Dumont fez um voo incomum, assim como muitas coisas na vida do inventor, com o Baladeuse: voou sobre as tropas militares em comemoração da Queda da Bastilha. A demonstração ocorreu a pedido do governo francês.
Outro fato curioso relacionado com esse dirigível é que o chapéu Panamá de abas caídas, tão característico de Santos Dumont, foi resultado de um acidente com a aeronave. Após o carburador pegar fogo, o inventor tentou apagar a chama com o que tinha nas mãos, o chapéu.
Nº 10: O primeiro dirigível do inventor que não era projetado para uso individual: a capacidade total da aeronave era de 20 pessoas. Essa foi a maior máquina criada por Santos Dumont.
14-Bis: um voo para a história
Em 1906, Santos Dumont se candidatou para concorrer à Taça Archdeacon, prêmio de três mil francos oferecido pelo advogado francês Ernest Archdeacon que tinha as seguintes condições: o vencedor teria que, pilotando um aeroplano, voar um percurso de vinte e cinco metros, com desnível máximo de vinte e cinco por cento.
E foi com esse propósito que Santos Dumont protagonizou um momento histórico: a comprovação da existência de um avião capaz de voar por seus próprios meios. Ele era o 14-Bis, também conhecido como Oiseau de Proie, ave de rapina em francês, o invento mais famoso de Santos Dumont até os dias de hoje.
O processo de construção do 14-Bis envolveu métodos inusitados e um deles deu origem ao nome do avião. O professor Marcelo explica que Dumont foi um engenheiro cuidadoso no processo de construção do avião, para garantir que não houvessem falhas. No início, de modo a adquirir melhor controle da máquina, o avião era fisicamente acoplado ao dirigível Nº 14, por isso o nome, já que “bis” significa “duas vezes”. Outro método que fez parte da criação da aeronave histórica envolveu o uso de um jumento: preso a um grosso fio, o animal puxava a máquina para que Dumont testasse o equilíbrio e a reação dos lemes do avião.
Em meio a testes inusitados, erros e acertos, finalmente surge o 14-Bis. A máquina pesava aproximadamente 260 quilos, possuía uma hélice de alumínio, motor a gasolina — tal qual suas outras invenções, porém, mais sofisticado e potente —, um leme de direção posicionado na parte da frente do avião — diferentemente dos aviões dos dias de hoje, que possuem o leme na parte de trás — e as asas eram feitas como caixas de pipa constituídas por seda japonesa. Também tinha como material bambu e cabos de aço, como os utilizados na produção de relógios de igrejas.
No dia 23 de outubro de 1906, no campo de Bagatelle, em Paris, quando julgou que o avião estava finalmente pronto, Santos Dumont entrou para a história como o homem que voou pela primeira vez em um aparelho mais pesado que o ar. O 14-Bis percorreu sessenta metros, com 2 a 3 metros de distância do chão, em uma tarde de terça-feira, na presença de mais de mil pessoas, incluindo a comissão fiscalizadora do Aeroclube da França. Dumont foi o vencedor indiscutível da Taça Archdeacon, tendo percorrido mais do que o dobro da distância exigida.
Simultaneamente a esse desafio, havia também o prêmio oferecido pelo Aeroclube da França, sob diferentes exigências: 1.500 francos concedido àquele que fizesse um percurso de cem metros com desnível máximo de dez por cento. No dia 12 de novembro do mesmo ano, o 14-Bis subiu seis metros de altura e percorreu 220 metros de distância, garantindo mais uma vitória para Santos Dumont.
Demoiselle: o primeiro avião produzido em série
A versão Nº19 era uma criação consideravelmente diferente do 14-Bis, principalmente no desenho: a “cauda” do Demoiselle era localizada na parte de trás e a hélice na frente, mais semelhante aos aviões de hoje em dia. A máquina era pequena, tinha cerca de oito metros de comprimento e pesava 110 quilogramas. Em 17 de novembro de 1907, Alberto tentou ganhar o prêmio Deutsch-Archdeacon com o modelo: a vitória seria concedida àquele que conseguisse realizar, em um circuito fechado, o voo de um quilômetro. O inventor não conseguiu, pois o motor da máquina era fraco para conseguir manter o aeroplano no ar.
Desde o 14-Bis, outros aviadores conseguiram decolar com máquinas “mais pesadas que o ar” e com desempenhos superiores, de modo que os feitos de Dumont já não eram mais tão impressionantes. Inclusive, o prêmio Deutsch-Archdeacon foi vencido por Henry Farman, que voou 1.500 quilômetros. Mas a obra prima de Santos Dumont ainda estava por vir com o Nº 20, a versão aprimorada do Nº19 que receberia o apelido de Demoiselle.
O monoplano Demoiselle, libélula em francês, foi a melhor criação de Santos Dumont em termos técnicos, além de ter sido uma das invenções que mais influenciaram a aviação naquele período. O primeiro ultraleve da história e o primeiro avião a ser produzido em série era relativamente fácil de pilotar e sua produção e manutenção eram de baixo custo. Desse modo, diferentes oficinas reproduziram o modelo em larga escala: mais de cem monoplanos foram fabricados e vendidos nesse período. Isso só foi possível porque Santos Dumont não patenteou a criação e publicou o plano detalhado da construção do Demoiselle em uma revista.
Demoiselle recebeu esse nome por lembrar um inseto, já que era uma aeronave pequena e oito vezes menor que o 14-Bis. A máquina pesava aproximadamente 118 quilos e era constituída de: uma hélice que chegava a aproximadamente mil rotações por minuto, alavanca de altitude capaz de controlar a subida e descida do avião, manivela de direção, asas de dez metros quadrados, estrutura de bambu e diferentes motores que foram testados, como o Dutheil-Chalmers, Antoinette, Darracq e Bayard.
O motor foi o motivo para Santos Dumont ter que pisar em um tribunal devido a uma briga por patentes. Isso porque o inventor não havia encontrado nenhuma oficina que entregaria o motor projetado por ele dentro do prazo estipulado. Assim, contratou alguns mecânicos da fábrica de automóveis Darracq. Após Dumont liberar a reprodução de cópias da Demoiselle, a fábrica tentou reivindicar direitos sob o motor, uma vez que tinha sido produzido nos perímetros da fábrica. Porém, perderam a luta judicial.
Em 1910, Santos Dumont encerrou suas atividades como aeronauta. Demoiselle foi o último avião pilotado e criado pelo brasileiro.
O triste fim
Após uma vida recheada de voos, Santos Dumont optou por mais calma em seus últimos anos. O aviador voltou para o Brasil em meados de 1915 e comprou de um relojoeiro uma casa bastante alta, a maior da cidade, conforme relata o biógrafo Fernando Jorge. Em seu livro As Lutas, A Glória e o Martírio de Santos Dumont, Fernando escreve sobre a vida de Dumont em sua residência na cidade fluminense, onde frequentava um clube de tênis e hasteava a bandeira nacional aos feriados. Sua antiga casa, que hoje se tornou um museu, conta com um chuveiro aquecido a álcool, um relógio de pulso exposto, que o aviador inventou por pura praticidade, além de outros inventos.
Porém, entre os prazeres de uma vida calma, os usos e as aplicações de seu legado incomodavam muito Alberto Santos Dumont. Em 1911, apenas cinco anos após o lendário voo de Bagatelle, aeronaves já haviam sido utilizadas para bombardeios pelo Exército Italiano contra o Império Turco-otomano. O uso militar da invenção de Dumont avançava a passos largos, o que, segundo Fernando Jorge, enchia de melancolia o coração do inventor. Enquanto cartas de 1918 mostram o otimismo de aviadores no mundo inteiro com a possibilidade de interligar o planeta com o serviço aéreo, em 1930, aeronaves já eram amplamente utilizadas em bombardeios e outras operações militares. Já havia até mesmo aviões projetados para voar e disparar uma metralhadora ao mesmo tempo.
Em 1932, a Europa estava em paz, mas no Brasil, estourava a Revolução Constitucionalista em São Paulo. Em 23 de julho do mesmo ano, um bombardeio promovido pelas forças federais assolou o Campo de Marte e uma das granadas caiu ao lado do clube de elite Esperia. Naquela manhã, aproximadamente às 11 horas, Alberto não suportou a tristeza causada pela sua própria invenção. Alguns momentos depois, como escreve Fernando, a camareira do hotel em que o aviador se hospedava em São Paulo gritou:
“-Suicidou-se o Doutor do 152!”
A notícia entristeceu personalidades em todo território nacional. Góes Monteiro, general das forças federais, declarou que não haveria bombardeios no território paulista por um dia, em memória de Santos Dumont. Getúlio Vargas declarou luto nacional de três dias.
E os irmãos Wright?
“Há provas incontestáveis!” declara Fernando Jorge, responsável pela mais extensa pesquisa e reconstrução biográfica de Dumont, em entrevista concedida ao Laboratório. A polêmica entre os irmãos americanos e o brasileiro sobre o crédito da invenção do avião, segundo Jorge, só existe entre alguns americanos e outros poucos. Dumont é reconhecido como pioneiro da aeronáutica não somente no Brasil, mas também em Paris, berço da aviação, onde uma placa na Champs-Élysées homenageia os recordes do aviador, além de estampar sua silhueta com o icônico chapéu Panamá.
Segundo conta Fernando Jorge, os irmãos Wright de fato foram convidados para demonstrar seu invento, o Flyer, em ação. Porém, como o aeroplano dos Wright precisava de uma torre de mais de dez metros de altura, um trilho de mais de 50 de comprimento e do lançamento de um pesado disco de metal como contrapeso, analistas franceses da época não consideraram aquele o primeiro aeromotor, uma vez que o dispositivo se assemelhava muito mais a um trabuco. Jorge conta que um jornalista francês, ao testemunhar a decolagem dos Wright, escreveu que “desta maneira, até um trem voaria”.
Já o voo de Santos Dumont, feito apenas com o motor do 14-Bis, conquistou reconhecimento internacional absoluto. Em 3 de novembro de 1906, uma foto do voo de Dumont foi estampada na revista ilustrada britânica The Illustrated London News, acompanhada da legenda “The first flight of a Machine heavier than air: Santos Dumont winning the Archdeacon Prize” (em português, “O primeiro voo de uma máquina mais pesada que o ar: Santos Dumont ganhando o Prêmio Archdeacon”).
É difícil medir com precisão até onde se estende o legado de Alberto Santos Dumont. Considerado por muitos como o pai da aviação, Dumont inspira até hoje diversas pessoas, aviadores ou não, com a história de aventuras e invenções do brasileiro que vivia nos ares.