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Seleção Brasileira: a linha entre a infâmia e a adoração

Por Tainah Ramos Abordar a construção do nacionalismo no Brasil é sempre um risco e uma complicação, sendo os séculos de domínio português e de miscigenação alguns dos principais motivos. A relação do brasileiro com ser brasileiro é conflituosa. Nossa cultura é fragmentada, e a Literatura tentou de todos os modos revelar algum viés de identidade …

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Por Tainah Ramos

Reação dos fãs brasileiros com o desastre da Copa de 2014 (Imagem: AFP PHOTO / PATRIK STOLLARZ)

Abordar a construção do nacionalismo no Brasil é sempre um risco e uma complicação, sendo os séculos de domínio português e de miscigenação alguns dos principais motivos. A relação do brasileiro com ser brasileiro é conflituosa. Nossa cultura é fragmentada, e a Literatura tentou de todos os modos revelar algum viés de identidade nacional.

O memorável cronista esportivo Nelson Rodrigues publicou uma vez no jornal O Globo: “Eis a verdade: – no Brasil, o futebol é que faz o papel da ficção. […] Lembro-me de uma pelada a que assisti, faz tempo. […] De repente, a coisa começou a crescer em campo. Tudo adquiriu um dramatismo inesperado e colossal. E me doeu não ser um Camões, ou um Sófocles, ou um Tolstói. Eu via, ali, todo um material abundantíssimo para uma Guerra e paz. […] O ficcionista ainda não desconfiou que os nossos descobridores, os nossos argonautas de cristal, os nossos lusíadas, os nossos mares – estão no futebol.”

Ah, sempre ele, o futebol. Aquele que expôs, em tons gritantes, o segredo que o brasileiro nunca ousou confessar antes: o sentimento de dor de não se reconhecer bom o suficiente para algo, de não valorizar a nação nem seus valores – isto que foi cunhado pelo mesmo Nelson de “complexo de vira-lata”.

Onde tudo – ou quase tudo – começou

Domingo, 16 de Julho de 1950, Maracanã. Em casa, o Brasil foi derrotado pelo Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950, por 2 a 1, o famoso Maracanazo. O resultado foi como um golpe para a representação do país. Ali, diante do fracasso esportivo, foi expressado o descontentamento do brasileiro com a própria raiz. O jornal Mundo Esportivo, por exemplo, nomeou como “Drama, tragedia e ridiculo!”.

Capa do jornal Mundo Esportivo após o Maracanazo (Imagem: Reprodução)

O sentimento de inferioridade já existia no cotidiano popular, mas foi após essa derrota da Seleção que ele recebeu esse nome de “complexo de vira-lata”, tamanho o impacto e vergonha sentidos. É o que afirma Francisco Fernandes Ladeira, mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ): “não que esse complexo não existia no país, de maneira geral, antes da Copa de 50, mas o futebol foi emblemático para mostrar esse senso de inferioridade do brasileiro em relação a outros povos”.

A relação do brasileiro com a seleção é ambígua e oscilante

Soa como clichê, mas é perceptível na vida cotidiana: se a seleção brasileira ganha, ser brasileiro é um orgulho e a equipe é a melhor do mundo; se ela perde, não há quem se salve, é a pior que existiu. Essa situação esteve presente em todas as Copas. Mesmo em anos de otimismo político, havia descrença no futebol, o qual surpreendeu em muitas ocasiões.

Em 1958, o ano do primeiro título, Nelson relatou em suas crônicas que “o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética.” Muitos torcedores diziam não acreditar nem mesmo que o time avançaria na competição, muito menos que seria campeão. Porém, para o cronista, talvez esse fosse um modo de disfarçar “um otimismo inconfesso e envergonhado”.

Fernandes faz observações sobre o cenário da época: “o Brasil ganha a Copa de 1958 em um momento, coincidentemente, de crescimento econômico do país. Eram os anos do Juscelino Kubitschek, do início da bossa nova, havia todo um clima de otimismo no Brasil que se refletiu na própria conquista do mundial”. Entretanto, no período anterior ao início do campeonato, assim como foi colocado por Nelson Rodrigues, não havia confiança naquela equipe que representaria a nação. “Mesmo a seleção de 58, campeã, sai do Brasil desacreditada, sofrendo várias críticas”, comenta o geógrafo.

O segredo desvelado, a partir de 1958, é constatado pelo professor. “O brasileiro tem essa relação muito ambígua com a seleção, porque se o Brasil ganha uma Copa do Mundo, a equipe é elogiada como a melhor do mundo. Se perde um jogo qualquer, é criticada. Talvez o torcedor brasileiro seja o mais exigente quanto a sua seleção. Ao contrário de outros países, nem mesmo comemoramos o vice.” Temporalmente distante, a ambiguidade persiste ainda hoje e é exposta nas redes sociais.

O duplo caráter da torcida brasileira (Imagem: Reprodução/Twitter)

Seleção como nacionalismo: compulsório em um momento, inevitável em outro

Semelhantemente a outros regimes ditatoriais, o futebol foi muito utilizado pelos governos militares como meio de coesão social, em um momento tão conflituoso da história do país, e também de incitação ao sentimento de nacionalismo. Até mesmo o tema musical da Copa de 1970 estava ligado aos ideais de desenvolvimento vendidos pelos militares.

A famosa “Pra frente, Brasil” exalta a união popular, o progresso e a seleção como símbolo do Brasil, com trechos como “Todos juntos vamos / Pra frente, Brasil / Salve a Seleção!” e faz, ainda, uso de recursos emocionais a fim da fusão brasileiro-equipe: “De repente é aquela corrente pra frente / Parece que todo o Brasil deu a mão / Todos ligados na mesma emoção / Tudo é um só coração!”.

Pelé após a conquista da Copa de 1970 (Imagem: Reprodução/Fifa)

O tricampeonato contou ainda com um sabor extra: foi o primeiro Mundial transmitido ao vivo na televisão brasileira. Era impossível não se emocionar e não se sentir representado, pois o cidadão comum, ao assistir a cada jogada do título, reconhecia-se parte do triunfo. O ano de 1970 foi um ano de paixão pela terra e pelo futebol nela jogado.

Essa proximidade gerada pela transmissão, pelo ao vivo e em cores, permaneceu estreita nas décadas seguintes e também após a redemocratização. A voz do narrador Galvão Bueno se tornou um emblema dos jogos do país de verde e amarelo. Aqueles que acompanhavam pela TV definiam os heróis da nação, como o time de 1994 – com Taffarel, Dunga, Romário e Bebeto –, ícone da alegria tupiniquim e o primeiro tetracampeão da FIFA World Cup.

O momento em que o italiano Baggio perde o pênalti e o Brasil sagra-se tetracampeão mundial (Imagem: Reprodução/Fifa)

Em 2002, não foi diferente. As cores brasileiras se tornaram mundialmente um sinônimo de futebol, os melhores jogadores do mundo e da história eram tupiniquins. O penta chegou e tornou o país o maior ganhador da competição até os dias atuais. De fato, para uma grande parcela dos cidadãos, a Seleção elevou o orgulho nacional. Se falhamos em muitas ocasiões como país e povo, a bola nos pés contrabalanceava.

A fratura da figura

Apesar do futebol ser ainda o esporte mais popular e amado no Brasil, a Seleção já não é mais seu retrato. “A pátria de chuteiras” supriu por anos a lacuna de representação da identidade nacional. “O Brasil, por exemplo, não tem heróis. Na Antropologia, se fala que toda nação tem que ter um mito fundacional. Na América Latina, os países tiveram um processo todo de Independência em relação à Espanha. Simón Bolívar, San Martin, por exemplo, vão atuar como mitos fundacionais”, constata Fernandes. Nesse sentido, os jogadores de futebol assumiram por muitas vezes essa posição heroica no imaginário popular.

Contudo, o geógrafo destaca que, atualmente, a Seleção não interfere mais diretamente na vida da população em um contexto geral amplo, e atribui isso ao momento histórico de pós-modernidade. “A Seleção Brasileira não é tão importante para o cidadão, de maneira geral, como foi em outras épocas. Na Copa de 86, eu lembro como mobilizava muito o país. Nos três ou quatro meses anteriores, as ruas já eram pintadas. Hoje a vida é muito corrida, então, dificilmente as pessoas se apegam a algo.”

A autoimagem do brasileiro, em algumas esferas e momentos, pode não ter sido transformada e permanecer complexada – por exemplo, as críticas e desilusões na Copa de 2014 –, porém em alguns momentos o amor à pátria emerge. Isso acontece mesmo que a equipe nacional de futebol não afete a vida das pessoas, e sim apenas as mais interessadas nesse esporte. Os dias de Copa, embora restritos, possuem sua magia de alguma forma.

Não são todos que torcem pelo Brasil de Neymar, não amam menos o país por isso, mas também há os apaixonados, os quais ardem pelo gol do Brasil e anseiam pelo grito de “É campeão!”. Existe muita esperança, até mesmo frenética, no futebol demonstrado pelos jogadores de Tite. O torcedor voltou a sonhar com a grandeza de ser novamente campeão do maior torneio do mundo e o primeiro hexacampeão da história.

Os meninos de Tite e a esperança do Hexa (Imagem: Reprodução/Folhapress)

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