Contexto histórico
Durante o Segundo Reinado, uma das medidas que Dom Pedro II buscou foi melhorar o sistema educacional brasileiro. Para isso, ele solicitou que Rui Barbosa elaborasse um projeto para a criação de uma grade curricular para implementar nas escolas. Fazia parte desse plano a inclusão de práticas de esporte ao ar livre.
Ao longo da década de 1880, os jesuítas foram os primeiros a aderir essa proposta e, inspirados nos grandes centros de educação da Europa, incluíram o futebol como prática esportiva no Colégio São Luís, em Itu, o qual eles administravam
Contudo, a chegada do futebol ao Brasil é atribuída a Charles Miller, paulista que foi estudar na Inglaterra e retornou em 1894 com duas bolas, dois uniformes, uma bomba de ar e um livro de regras para a prática esportiva. Ele criou, junto com outros colonos ingleses, o São Paulo Athletic Club. Em 1898, foi criado o primeiro clube formado apenas por brasileiros e para brasileiros, a Associação Atlética Mackenzie College.
A Doutora em História Social na Universidade Federal Fluminense e autora do livro “Histórias do Futebol” Lívia Gonçalves afirma que, embora exista a narrativa de que o futebol chegou através das elites e que apenas nas primeiras décadas do século 20 chegou às camadas populares, importantes trabalhos de pesquisa, como a tese de doutorado de Leonardo Pereira, contestam parte desta versão. Segundo o trabalho, o futebol era praticado por setores populares desde o século 19.
O futebol rapidamente se difundiu pelo país e se tornou o esporte mais praticado, substituindo inclusive o remo, que até então ocupava essa posição. Clubes como Flamengo, Vasco da Gama e Botafogo eram conhecidos pelas regatas e, depois, se tornaram times de futebol.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, as fábricas incentivaram a construção de campos de futebol, a fim de atrair os operários à prática do esporte. Em 1940, o Estádio Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, foi inaugurado em São Paulo; e em 1950, o Estádio Jornalista Mário Filho, o Maracanã, no Rio de Janeiro.
Mais de cem anos se passaram, e a realidade do futebol no país mudou bastante. O esporte que começou como do povo se tornou cada vez mais elitizado. E isso ocorre por um conjunto de fatores.
Por volta dos anos 1990, o futebol começou a ser visto como um negócio rentável. As TV ́s passaram a investir mais dinheiro em transmissão e aumentar a verba para determinados clubes. As empresas começaram a enxergar uma ótima maneira de divulgar suas marcas e investiram em patrocínios. Os próprios clubes viram na venda de jogadores uma forma de lucrarem.
Embora atualmente o Brasil tenha 656 clubes profissionais, segundo o relatório FIFA Professional Football Landscape — praticamente 15% dos clubes existentes no mundo inteiro —, apenas 20 fazem parte da “elite” futebolística que é a Série A do Campeonato Brasileiro, o que promove uma grande desigualdade entre eles.
Essa visão mercadológica do futebol tem contribuído para a elitização da modalidade. Clubes como Atlético Mineiro, Flamengo e Palmeiras têm se distanciado cada vez mais financeiramente e até esportivamente dos outros clubes graças ao apoio de grandes patrocínios. O que reflete também na relação do clube com a torcida.
A elitização de arenas, ingressos, transmissão e Sócio Torcedor
Com a Copa do Mundo no Brasil em 2014, o processo de elitização do futebol acelerou ainda mais. Foram construídas — ou reformadas — cerca de 12 arenas por todo o país.
Além dessas custeadas em parte pelo governo, ainda existem algumas construídas de forma privada, como o Allianz Parque, do Palmeiras e, mais recentemente, a do Atlético Mineiro, em parceria com a MRV. Elas são modernizadas, confortáveis, com capacidade menor e com ingressos muito mais caros.
“O que vivemos é parte de um fenômeno global, a arenização dos espaços esportivos,não apenas do futebol, importante destacar. É um modelo que influencia e pressiona diretamente o torcer, ou seja, as manifestações de torcedores, suas identidades e tudo mais. O processo de arenização é excludente, elitista e totalmente voltado para uma lógica neoliberal, que transforma torcedores em consumidores. Isso, sem dúvidas, exclui os setores populares dos estádios, uma vez que tais setores estão também, tradicionalmente, excluídos do modelo consumista que nossa sociedade mantém”, afirma a Lívia.
Em 2018 e 2019, o Palmeiras teve o ingresso mais caro do Brasil, com o valor do ticket médio em R$67 e R$57, respectivamente. Em comparação, o Fortaleza teve seu ticket médio em R$14 e R$12 no mesmos períodos. Além disso, competições internacionais, como a Copa Libertadores da América, têm um custo de ingressos maior do que competições regionais, como o Campeonato Paulista
Já os jogos da Seleção Brasileira, que deveriam ser de acesso mais democrático pois a seleção, diferente dos clubes, não necessita de dar lucro para se manter, apresenta um valor de ingresso ainda maior . Na Copa América de 2019, sediada no Brasil, o valor desembolsado para ir ao estádio ia de R$120 a R$890, sendo o ingresso mais caro correspondente a 89,17% do salário mínimo da época, que era de R$998. A título de comparação, a Eurocopa ocorrida na França, em 2016, teve seus valores entre R$110 (25 euros) e R$3884 (895 euros), com o salário mínimo em 1521 euros, ou seja, 58% do ingresso mais caro.
Esses custos altíssimos promovem uma segregação na presença do público que frequenta os jogos, tornando-o cada vez mais de difícil acesso às camadas baixas. Alguns clubes começaram a adotar programas de ingressos a preço popular para tentar reverter a situação e dar vantagens no valor aos sócios torcedores. Lívia lembra quando o Vasco da Gama tentou uma proposta mais popular, com preços acessíveis para os setores populares e os torcedores dos times adversários debocharam da medida, refletindo a ideia de elitização e exclusão que seus clubes praticam.
Filipe Santoro, torcedor do Palmeiras, reforça que essas medidas acabam sendo mais protocolares do que propriamente uma tentativa dos times de reverter essa segregação. “Na época do Palestra Itália, os preços mais populares eram de 70% do estádio, o setor da elite era um pedacinho. Agora, são apenas 7000 ingressos, que de 40.000, não dá 20% do estádio de acesso popular”. afirma ele.
Esse processo não se restringe apenas à ida ao estádio. Os jogos transmitidos pela TV estão segregados em emissoras. Embora o fim do monopólio de uma única emissora seja algo positivo, pois diminui o poder dela, conseguir acompanhar os jogos do seu time tornou-se uma missão impossível.
Os jogos da Série A e B do Campeonato Brasileiro e da Copa do Brasil pertencem a Rede Globo, que só transmite em seu canal jogos de domingo à tarde e quarta à noite. Os outros jogos devem ser acompanhados pelos canais SporTV e Premiere — com assinaturas separadas. A Copa Libertadores tem seus direitos com o SBT, que só transmite jogos às terças, e nos canais Disney —mais uma assinatura.
Alguns jogos só são transmitidos pela Conmebol TV, outro serviço de Streaming que exige assinatura. A Copa Sul-Americana, inclusive, só é transmitida por essa plataforma. Além disso, alguns jogos do Brasileirão e os Jogos da Champions League são transmitidos pela TNT Sports ou pela HBO Max, contabilizando mais assinaturas para o bolso do torcedor
Ou seja, se o indivíduo quiser acompanhar todos os jogos de seu time, ele terá que desembolsar um bom valor em assinaturas, além de um bom pacote de internet. Isso leva muitos torcedores a terem um “apagão” de jogos dos seus times e com isso, não conseguir acompanhar.
Preços dos Materiais
Outra consequência direta da elitização do futebol se dá no valor dos materiais esportivos dos clubes. As camisas dos times custam, em média, R$254,50, ou seja, 23,14% do salário mínimo do brasileiro. Além do preço alto de cada camisa, os times têm produzido a cada temporada mais modelos diferentes além dos uniformes 1 e 2 — como de goleiro, comemorativa ou, simplesmente, uma terceira camisa —. “O torcedor se torna um consumidor nessa lógica e, ainda mais violento, um consumidor de luxo”, afirma Lívia.
Entre os motivos para as camisas serem tão caras está o patrocinador, a busca pelo lucro e o custeio do clube. Isso faz com que o clube venda menos e proporciona um aumento na pirataria das camisas, em que o próprio clube é quem sai perdendo — vende menos oficialmente e o retorno financeiro da venda das camisas pirateadas não retorna a ele.
Além disso, é curioso notar que, assim como nos ingressos, a camisa da seleção brasileira apresenta maior valor em relação aos clubes Em 2014, a Amarelinha teve o maior valor proporcional ao seu torcedor, quando comparado aos outros países, cerca de 16% da renda média mensal de um trabalhador.
“Eu acho um absurdo o preço. Inclusive essa ideia de que a gente se acha torcedor de algum time, como se fosse uma família, como se fosse algo que é teu e pessoal, só que não é. É uma empresa que te explora o tempo todo, quer seja no preço do ingresso, quer seja no preço do material esportivo e você idolatra esse time e vai brigar com qualquer pessoa que diz que é contra aquilo”, afirma Filipe.
Jogadores Caros
Notícias que ostentam os altos valores pagos por jogadores de futebol se tornaram comuns no mercado da bola. Em 2017, Neymar tornou-se a transferência mais cara da história do futebol, custando R$821,6 milhões ao PSG. No mesmo ano, o Palmeiras gastou com Lucas Lima, entre salários e luvas, em torno de R$47 milhões por cinco anos de contrato.
Esses altos valores que alguns clubes brasileiros movimentam surpreendem, pois destoam da realidade financeira da maioria dos torcedores. O Flamengo, que se autointitula “Time do Povo”, paga aos seus principais artilheiros Gabigol e Bruno Henrique cerca de 2,5 milhões de reais por mês. “É muito dinheiro pago a um jogador em um país que o salário mínimo é mil reais”, afirma Filipe.
No atual cenário futebolístico, torcer parece ultrapassar o sentimento de apoiar e acompanhar apenas o time de coração, uma vez que alguns atletas acabam atraindo mais holofotes para si do que ao clube que representam. A chegada de Daniel Alves ao São Paulo proporcionou um exemplo do benefício financeiro de se ter uma estrela na equipe. Após ele ser contratado, houve um aumento na receita do Tricolor Paulista, dado o crescimento na venda de camisas e na adesão ao sócio torcedor.
Os jogadores são muito bem pagos por serem os protagonistas de um espetáculo que gira cada vez mais em torno do dinheiro. Os clubes, ao contratá-los, esperam vender mais produtos e ter um aumento da presença de público nos estádios, o que os beneficia financeiramente.
Os atletas super valiosos são apenas um apetrecho para a elitização que o futebol tem caminhado. “Não dá pra dizer que um esporte é popular e aplaudir atletas que ganham 500 mil, o salário de jogador é salário de celebridade hoje em dia”, aponta Filipe.
A exaltação desses jogadores traz consequências ao esporte não apenas por deixá-lo mais caro, mas também por influenciar na qualidade das partidas disputadas no país. Os atletas super valiosos, muitas vezes, agregam mais em propaganda do que nos jogos. Lucas Lima, por exemplo, nos 4 anos em que ficou no Palmeiras, disputou 165 partidas e marcou apenas 12 gols.
A relação do esportista com o clube tem se tornado financeira, ter uma estrela no elenco parece importar mais do que o desempenho positivo da equipe nas competições. Sobre essa relação, Lívia afirma: “Os atletas se tornaram mercadoria. Com grandes jogadores os clubes ganham mais patrocínios, mais investimentos. É uma relação comercial”.
O Atlético Mineiro é também um bom exemplo. O time contratou para a temporada de 2021 jogadores como Hulk e Diego Costa, ambos com os salários correspondendo a 25,70% da folha salarial do time. Os jogadores são declaradamente palmeirenses e tinham demonstrado o desejo em atuar pelo Verdão antes. Mas, após longas temporadas contratando desesperadamente, o time paulista resolveu segurar as contas.
Clubes empresas
Para adequar-se à realidade moderna e elitizada do futebol brasileiro, os gestores dos clubes aplicam investimentos milionários em arenas e jogadores. O que, mesmo trazendo retorno positivo dentro de campo, pode tornar-se um problema aos cofres dos times. O anseio em obter bons jogadores e estádios luxuosos pode gerar descontrole financeiro à equipe.
O Cruzeiro tornou-se um grande exemplo de como o alto investimento pode trazer, a longo prazo, problemas graves. Em 2013, o time celebrou o retorno positivo dos 40 milhões aplicados no elenco, visto que o investimento levou à conquista do campeonato brasileiro. No ano seguinte, a Raposa levantou mais uma vez a taça do Brasileirão e, em 2017 e 2018, foi a vez de comemorar a Copa do Brasil.
No entanto, em 2019, os problemas internos vieram à tona e denúncias de várias irregularidades nas transações de jogadores com empresários não cadastrados pela CBF apareceram. A má gestão levou a Raposa ao primeiro rebaixamento em sua história. E, para piorar, em 2020, o clube não conseguiu retornar à série A, o que agravou a crise.
Notícias recorrentes mostram que clubes de todas as partes do país enfrentam graves crises financeiras. Só neste ano, o Corinthians informou que possui quase 1 bilhão em dívidas e o Vasco da Gama também anunciou que vive com um rombo financeiro de mais de R$800 milhões. Contudo, o ocorrido com o Cruzeiro foi a gota d’água para o problema da má administração que os grandes clubes sofrem no país.
A solução que vem ganhando força para esse descontrole financeiro é a transformação dos clubes em empresas. O fenômeno já ocorre em muitos países pelo mundo, principalmente na Europa. Na Alemanha, o Bayer Leverkusen pertence 100% à empresa Bayer e, na Inglaterra, todos os grandes clubes têm um dono ou são administrados por sócios.
No Brasil, a presença desse tipo de equipe ainda é discreta. O Red Bull Bragantino e Cuiabá são os principais exemplos do modelo empresarial nos times de futebol. A proposta deles é de uma administração que abandona a condição de associações civis sem fins lucrativos, vigente na maioria dos clubes brasileiros. Normalmente, a gestão antiga preocupa-se mais nos bons resultados dentro de campo do que em arrumar as finanças da casa.
A mudança dos times para o modelo empresarial tem como objetivos atrair mais investidores e garantir maior transparência na administração financeira. Há também a proposta de minimizar dívidas, a fim de evitar os rombos financeiros que ocorrem em muitos clubes nacionais. Neste ano, o assunto ganhou força judicial e, em agosto, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei que permite a transformação dos clubes em empresas.
Mesmo propondo mudanças positivas à realidade financeira das equipes, a nova forma de administração, ao transformar os clubes em empresas, visará o lucro, assim como qualquer outra atividade capitalista. O que pode acarretar em um maior encarecimento dos ingressos e dos produtos do time, o que afastaria ainda mais as pessoas mais pobres, o famoso “povão”, dos estádios e do convívio com o clube de coração.
Matéria Show de Bola. A questão me parece ser sem volta. Futebol virou um negócio altamente lucrativo pois é movido por paixão.
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