Por Fernando Silvestre (fernando.silvestre@usp.br)
O hommus bi tahine é uma pasta de grão-de-bico que se tornou comum no Brasil, devido a imigração árabe constante. No Brasil, a pasta ganhou um readequação do nome e passou a se chamar popularmente Hummus/ Homus que, em árabe, significa o próprio grão-de-bico. O prato, à base de grão-de-bico cozido, tahine (pasta de gergelim torrado e processado), suco de limão e alho, é típico da região do Levante, que engloba Israel, Líbano, Síria, Jordânia e Palestina.
O Dia Internacional do Homus, 13 de maio, evidencia os significados e a rivalidade desse alimento para as culturas árabes e israelita.
A Origem do Homus
A data do surgimento da pasta é incerta e há uma série de disputas simbólicas sobre onde teria surgido esse alimento. Alguns autores e cozinheiros utilizam relatos da Tanakh, a Bíblia Hebraica, para provar uma suposta origem bíblica do Homus, como em: “Venha cá, e coma o pão, e mergulhe um pedaço dele no hometz”. Porém, estudiosos da língua original do fragmento afirmam que hometz, no hebraico contemporâneo, significa ‘vinagre’ e que só a pronúncia seria parecida com a de hummus. O termo também é traduzido para vinho, em vista do hebraico bíblico, o que torna discutível a afirmação.
Além disso, historiadores, como o professor Ari Ariel, que dirige o departamento de Estudos Internacionais da Universidade de Iowa (EUA), trazem relatos em seus estudos que demonstram receitas similares à do Homus em livros egípcios do Século XIII. Fato que pode indicar que a autoria do prato seja do Egito. Discursos como esse levam a crer na dispersão desse prato em todo o Levante, o qual inclui o norte da África e, portanto, o Egito, ao se tratar do Período Medieval e das Cruzadas.

[Imagem: Norman Einstein/Wikimedia Commons]
Atualmente, a maioria dos Estados e nações do Levante acreditam no surgimento do Homus sendo no Oriente Médio de forma abrangente. Ganha-se destaque a Palestina como o local mais propício para uma autoria mais representativa do prato. Esse ênfase palestino está associado a situação política e cultural vivida na Faixa de Gaza, ou seja, o conflito israelo-palestino iniciado em 2023.
A disputa étnica-cultural observada leva a crer em uma possível aliança entre os povos árabes sobre a autoria da pasta e uma maior negação da participação israelita na criação do Homus. Essa discussão está inclusa nos conflitos árabe-israelenses, como será visto posteriormente. Então, é possível analisar uma diversidade de origens desse prato do Levante, o que dificulta a definição clara de uma nação “dona” do Homus.
Os Significados do Homus
O Homus representa diversos valores para as comunidades árabes e israelenses. Funciona como alimento de alto valor nutritivo, prato gourmetizado, forma de resistência e, até mesmo, instrumento de dominação.
Para a coletividade árabe, o Homus é um prato do proletariado, assim como o falafel (bolinho de grão-de-bico temperado com especiarias). Ele está incluso no cotidiano dessas sociedades como forma de alimentação e sobrevivência. A pasta é usada pelas camadas mais baixas, por exemplo da Palestina, para a alimentação da família. Essa iguaria é considerada um prato urbano, atrelada às classes sociais marginalizadas, o que faz esse alimento carregar consigo ideias e valores sociais da classe operária em que está incluso.
Por outro lado, com a criação do Estado de Israel em 1948, os judeus que imigraram para o recente país adaptaram-se à culinária local e incorporaram os hábitos gastronômicos das comunidades que residiam no território ao seu cotidiano. A introdução de alimentos como o Homus, o Falafel e o Baba Ganoush (purê de berinjela assada com tahine e suco de limão) nos padrões alimentares israelitas incentivou a industrialização desses alimentos. A fabricação modernizada levou a globalização desses pratos, em destaque, o Homus, que, devido a elevada aprovação internacional desse alimento, passou a ser produzido em fábricas na Europa e na América do Norte.
A introdução do Homus na cultura israelita gerou também um fenômeno ainda mais recente: a gourmetização. Após a industrialização, restaurantes ao redor do mundo passaram a produzir o Homus para as classes médias e ricas. A mudança do público-alvo tornou o consumo do Homus, para a comunidade internacional fora do território árabe, algo considerado chique e gourmet. A comercialização desse novo produto de origem estrangeira transformou um alimento do proletariado em um produto cultural relacionado ao luxo. O consumo requintado dessa pasta altera a funcionalidade nutricional desse alimento e ignora a sua importância na sobrevivência das camadas populares do Levante.
Relato sobre um certo Homus
A imigração árabe ocorre no Brasil em fluxos variáveis desde o século XIX. A maioria das famílias árabes que se alocaram no território nacional chegaram primeiro a São Paulo, através do Porto de Santos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estado segue sendo a principal região com mais descendentes árabes do país, seguido do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A chegada de novos povos e a introdução das suas culturas na sociedade brasileira popularizaram alimentos típicos dos países de origem, como a esfiha, o quibe e o próprio homus.
O consumo de alimentos árabes pelos descendentes dos imigrantes tem valores simbólicos e sentimentos relacionados à hereditariedade. Esse é o caso da estudante universitária Isabela El Kadri, que vem de uma família Síria e Libanesa. Isabela fala sobre o homus como um acompanhamento protagonista durante as refeições, que está presente em todas as reuniões familiares. A aluna do curso de Relações Internacionais descreve a sensação de consumir o homus como algo sentimental e nostálgico.
“Esse prato sozinho consegue me transportar para confraternizações ou para o dia a dia de minha família, com música árabe tocando alta de fundo e risadas ao degustá-lo”
Isabela El Kadri
Os relatos sobre o homus pela maioria dos descendentes são preenchidos de carinho e de saudosismo. Além do consumo de alimentos herdados pelos antepassados, a forma de comer aciona uma conexão com a ancestralidade. Isabela declara que comer com as mãos, por exemplo o pão, a aproxima da “tradição familiar”. Sentimentos como esse aumentam os significados e valores culturais do homus.
As cozinhas brasileiras e latinas imparciais
Os chefs de cozinha latinos, em destaque os brasileiros, assumem uma postura imparcial sobre a qual comunidade pertence o Homus.
Essa conduta apartidária tem crescido com a ascensão do Youtube de Gastronomia como forma de trabalho de muitos cozinheiros. Um caso é o canal da chef argentina Paola Carosella. A cozinheira, durante um vídeo sobre a receita de Homus, interrompe sua assessora após ela dizer que a pasta é um prato “meio árabe”. Paola rebate e diz que seria, na verdade, um prato “muito mediterrâneo”, além de falar que seria negativo entrar nessa discussão. Comportamentos semelhantes atuam de forma positiva na transmissão das receitas e demonstram imparcialidade, pois colocam todos os países banhados ou próximos ao Mar Mediterrâneo como detentores parciais da origem do prato, entre eles as nações do Levante.
Outro destaque importante é o vídeo do chef brasileiro Mohamad Hindi, também no Youtube. No vídeo da série “Receitas de Israel”, ele humoriza a situação ao brincar sobre ser ele o dono da melhor receita de homus. O objetivo era chamar a atenção do público e mostrar-se imparcial, ao não considerar nenhum Homus de uma nação superior a outra.
Um conflito gastro político
O conflito entre Israel e Palestina assume não somente um caráter político, mas também cultural e gastronômico. A participação do homus na disputa é fundamental para compreender os métodos utilizados por Israel para invisibilizar a cultura dos povos palestinos e como essas comunidades usam o homus em estratégias de resistência. Segundo a professora Francirosy Campos Barbosa, livre docente do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Israel apropria-se do Homus como um prato nacional, o que atua como parte de uma estratégia nacionalista, ou seja, a instrumentalização da comida como identidade nacional.
“Eu lembro muito de uma professora de antropologia[…] que dizia que a ‘cultura entra pela boca’. E eu reforço que a política entra pela boca”
Profa. Francirosy Campos Barbosa, em entrevista ao Sala 33
A docente, também Coordenadora do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (GRACIAS), considera o prato “politizado” à medida que Israel apropria-se de elementos culturais dominados pelos palestinos como forma de apagamento da cultura árabe do Levante. O homus passa a representar não somente um alimento, mas também um símbolo da identidade e da resistência cultural da Palestina. O movimento colonialista apresentado por Israel sobre a culinária do local, observado também na nacionalização do tabule (uma salada árabe à base de trigo) e do falafel, é denunciado por ativistas árabes como apropriação cultural.
Francirosy Campos afirma sobre esse apagamento: “Não deixa de ser um um um grande elemento para constituir a perversidade de um país que coloniza o outro. Essa colonização perpassa não só a ocupação do território, a morte das pessoas que lá vivem, mas também a apropriação alimentar desses alimentos que constituem a identidade culinária palestina”. Essa situação acentua a rivalidade entre árabes e Israelenses, o que leva a denominação desse conflito como gastro político, pois utiliza o alimento, por exemplo o Homus, como forma de instrumento de dominação e de defesa contra essa colonização.
A contraposição apresentada pela estudiosa sobre a pasta ser israelita é construída também pela visão da sociedade sobre o assunto. “Ninguém identifica o Homus como prato israelense. As pessoas já sabem que quando vão a um restaurante árabe, por exemplo, o Homus faz parte da culinária árabe”, explica. Francirosy Campos declara esse pensamento “um bom exercício” para analisar o patrimônio culinário do Levante árabe e de como essa ideia dificilmente será rompida pela comunidade internacional. Mesmo assim, debates acerca da nação do homus continuam em outros aspectos de rivalidade.
A Guerra do Homus
A chamada Guerra do Homus foi uma espécie de competição em que Israel e Líbano disputaram sobre quem teria o maior prato de Homus pelo Guinness World Records (Recordes Mundiais do Guinness). O início desse confronto foi quando cozinheiros israelenses se uniram para produzir um prato de Homus de aproximadamente 400 Kg em maio de 2008. A atividade teve como possível causa uma campanha do Homus nos mercados europeus e estadunidense, pois foi patrocinada pela empresa Sabra do grupo Osen. O grupo é propriedade da Nestlé, produtora multinacional de alimentos.
O recorde conquistado por Israel em 2008 gerou um desconforto entre os países do Levante. Em outubro do mesmo ano, Fadi Abboud, presidente da Associação de Industriais do Líbano, acusou Israel de fazer o Líbano perder dezenas de milhões de dólares, por comercializar pratos libaneses como israelitas. A demanda não foi apresentada em nenhum tribunal internacional. Por outro lado, a resposta à conquista de Israel aconteceu em outubro de 2009 quando o Líbano produziu um prato de mais de 2 mil Kg de Homus, conquistando um novo recorde Guinness.
Em novembro de 2009, Israel contra-atacou com a produção de um prato com mais de 100 Kg de Meorav Yerushalmi (prato originado em Jerusalém, na década de 1970, à base de vísceras de frango ou de cordeiro servidos com pão pita, saladas e tahine), que os concedeu um novo recorde. Mesmo não sendo uma conquista associada ao Homus, a imprensa israelita tratou o novo recorde como uma vitória sobre o Líbano.
A nova conquista não contentou Israel. Cozinheiros de Abu Gosh, município israelita na região de Jerusalém, uniram-se para produzir um novo prato com mais de 4 mil Kg de Homus. A produção foi guiada por Ibrahim Jawadat, dono do restaurante Abu Gosh. A disputa pelo maior prato de Homus foi encerrada em 2010 quando um prato com mais de 10 mil Kg de Homus foi produzido em Beirute, Líbano. Essa competição pelo recorde Guinness é um desdobramento importante para a disputa cultural sobre o homus. A rivalidade demonstra a tentativa de definir uma verdadeira identidade nacional da pasta, porém ainda é indefinida a propriedade sobre a origem do alimento.
*Imagem de Capa: Wikimedia Commons/ English Wikipedia/ Beyrouthhh