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Jogos Mundiais dos Povos Indígenas: o esporte e os espaços de memória

Como a competição impactou as comunidades brasileiras e mundiais ao longo de sua história

Em junho de 2021, Carlos Terena, importante liderança indígena e um dos idealizadores dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, veio a óbito aos 66 anos em decorrência da Covid-19. A pandemia impactou diretamente as comunidades indígenas, que se viram em uma situação de extrema vulnerabilidade ao vírus, do qual Terena foi mais uma dentre as mais de 600 mil vidas perdidas no país pela doença. O seu legado permanece vivo, sobretudo, pelo papel que teve na discussão dos direitos dos povos indígenas e também pela sua atuação no esporte. 

Carlos Terena em 2015 [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

Carlos Terena foi lembrado por familiares e por outras lideranças dessas comunidades como uma figura que foi capaz de, em vida, dar visibilidade aos povos indígenas e suas causas. Sua morte revive discussões fundamentais sobre a importância da memória e da tradição para essas populações, tendo em vista que anciões e integrantes mais velhos foram as principais vítimas da Covid-19. Além disso, evidencia a importância para a perpetuação e reinvenção de costumes e práticas do esporte e de eventos como os Jogos Mundiais, que não podem ser esquecidos.

O nascimento dos Jogos

Os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas são um evento esportivo e cultural que busca valorizar os jogos tradicionais indígenas, de modo a preservar seus patrimônios culturais. Para além dessa conservação, o evento visa promover a integração entre as etnias indígenas e, também, sensibilizar a população no geral, inclusive de não-indígenas, sobre a diversidade das culturas e a importância dessas para a formação das nações participantes.

Os Jogos são resultados das edições nacionais e nasceram ainda em 2013, durante os Jogos Nacionais de Cuiabá, a partir de um acordo feito entre o Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena (ITC), líderes estrangeiros de 17 países, 48 etnias nacionais e o governo federal, por meio do antigo Ministério do Esporte. Dois anos depois, em 2015, os Jogos efetivamente aconteceram. 

Marco Bettine comenta que os Primeiros Jogos Mundiais dos Povos Indígenas acontecem no Brasil em meio à onda de megaeventos, como o Panamericano, a Copa do Mundo e os Jogos Militares, que conseguem ser sediados no país devido a uma boa articulação do corpo diplomático do país. Bettine é professor da Universidade de São Paulo com pós-doutorado na Universidade do Porto em sociologia do esporte e fez parte de um grupo de pesquisa da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, que realizou pesquisa de campo e fez a cobertura dos Jogos de 2015. 

No cenário nacional, os Jogos são mais antigos. Com o intuito de reunir diversas etnias e suas práticas, eles aconteceram pela primeira vez em 1996 pela articulação de lideranças como Marcos e Carlos Terena, Jeremias Xavante, Tabata Kuikuro e Iuraru Karajá com o Governo Federal. Desde essa primeira edição, o evento tem acontecido anualmente e apenas mais recentemente, nos anos de 2019 e 2020, os Jogos foram adiados em decorrência da pandemia de Covid-19. 

Diferentemente de outros eventos esportivos mundiais como as Olimpíadas ou a Copa do Mundo, os Jogos dos Povos Indígenas têm um processo de seleção gregária. Isto é, não existe nenhuma competição classificatória ou seletiva que determine os países e etnias participantes. 

Além disso, existe uma dinâmica bem distinta de incorporação de práticas no decorrer dos Jogos que ampliam tais distinções, uma vez que o evento tem um aspecto cultural marcante. Marco Bettine pontua: “várias lutas corporais e outras práticas com pequenas ou grandes demonstrações, desde que houvesse condições materiais para todos participarem, foram sendo incorporadas conforme a etnia”.

A edição de 2015

Os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas de 2015 (JMPI) aconteceram entre os dias 22 e 31 de outubro na cidade de Palmas, no Tocantins. As atividades ocorreram em diferentes espaços, sendo eles a Arena de Jogos, a Oca da Sabedoria, a Oca Digital, a Feira de Agricultura Familiar Indígena e a Feira de Artesanato. No evento, participaram mais de 2 mil atletas, representantes de 30 nacionalidades e 24 etnias. 

Nesta, que foi a primeira edição dos Jogos, foram incluídas competições de esportes indígenas 一 reunidos em jogos tradicionais demonstrativos e jogos nativos de integração 一, além de um esporte ocidental competitivo, o futebol. Os jogos demonstrativos são aqueles que tem como objetivo apenas a exibição, sendo dois deles o tihimore 一 jogo de arremesso de bolas de martelo praticado pelas mulheres do povo Paresi, do Mato Grosso 一 e o idjassú 一 tipo de luta corporal praticada pelo povo Karajá, da Ilha do Bananal. Já na categoria integração, destacaram-se a corrida de tora, arco e flecha, cabo de força e canoagem. 

O aspecto cultural foi extremamente forte durante os Jogos. Isso porque além dos demonstrativos, existiu toda uma preparação de horas para a realização das pinturas corporais e também durante a dinâmica do evento, em que as relações sociais, muitas vezes, adentravam o campo dos jogos. Cenas como a de mulheres amamentando seus filhos durante as partidas também foram corriqueiras durante o evento. Assim, faziam-se pequenos intervalos para que essa demanda fosse atendida e, depois, os jogos seguiam normalmente. 

Nesse sentido, Bettine relembra de uma cena marcante: “Após um time ser desclassificado, um atleta quis dar a camisa a outro do time eliminado e em troca recebeu um colar da outra etnia. Quando o primeiro tirou a sua camisa, ele tinha sua pele toda pintada, como uma espécie de armadura por debaixo da camisa”.

As etnias participantes foram escolhidas pelo comitê organizador, o ITC, que utilizou como critérios a conservação de costumes de cada etnia, como o idioma, as pinturas e os esportes tradicionais. No caso das etnias brasileiras, considerou-se também como uma exigência a participação em alguma edição dos Jogos Nacionais. 

Criança indígena com arco e flecha nos Jogos Mundiais de 2015 [Imagem: Tiago Zenero / Flickr]
A escolha dos atletas participantes era de responsabilidade do cacique e do respectivo chefe da delegação. É importante destacar que não haviam restrições de idade ou sexo. Assim, crianças, desde que a prática fosse segura para determinada idade, mulheres e pessoas mais velhas das tribos poderiam participar dos Jogos. 

Entretanto, essa seleção de etnias levantou alguma polêmica entre as comunidades indígenas. O antropólogo e professor da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), José Ronaldo Fassheber, afirma que existe uma crítica à organização, já que nem todas as etnias conseguem de fato ir, e sobre os critérios utilizados. ”São trezentos e cinquenta etnias e em torno de quarenta mil pessoas. Existem aldeias de São Paulo até o Rio Grande do Sul. Você escolhe uma pra levar, então todas as outras acabam se sentindo injustiçadas”. Porém, o professor salienta: “ainda que não se tivesse toda a representação, esses jogos são um palco, eles têm uma série de panos de fundo que o acompanham”

 

https://www.instagram.com/p/9ZnLBcoAZy/

Um dos fatores que compuseram esse cenário complexo dos Jogos Mundiais foi a tramitação da PEC 215, emenda constitucional que tinha a intenção de delegar exclusivamente ao Congresso a função de demarcação de terras indígenas e quilombolas. Com a aprovação de tal medida, a reivindicação de novas terras para demarcação seria extremamente prejudicada e as demandas dos povos indígenas colocadas em xeque, de modo a beneficiar grandes proprietários de terra. 

Durante os Jogos, atletas de etnias brasileiras manifestaram-se contra a PEC e, naquele momento, alguns acreditavam que o contexto não era exatamente o mais propício para a realização do evento, tendo em vista a ofensiva que essas populações viriam a sofrer. As mobilizações de certos grupos aconteceram inclusive na abertura dos Jogos, momento no qual a ex-presidenta Dilma Rousseff esteve presente. Apesar da movimentação contrária à emenda, na mesma semana dos Jogos Mundiais de 2015, a comissão destinada para analisar o tema aprovou a PEC.

Para além do esporte

Os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas tiveram uma importância significativa enquanto evento esportivo e cultural, mas os seus impactos foram muito mais amplos. De maneira mais ou menos formal, discussões sobre questões políticas e sociais que as populações indígenas vivenciavam e problemáticas, que ainda permanecem.

“O que eu pude perceber nesses jogos concretamente foi um grupo grande de homens, de mulheres, jovens e crianças, que ficaram cerca de quinze dias num lugar juntos para celebrar o esporte, celebrar suas práticas com outros grupos que tem uma história em comum, inclusive de sofrimento”, relata Bettine. 

Reunião sendo realizada na Oca da Sabedoria [Imagem: Mila Petrillo / Instagram]
Além disso, Bettine também menciona um episódio desses encontros possibilitados em meio aos Jogos Mundiais. “Um grupo de mulheres pediu para falar na Oca sobre a questão da alimentação saudável, elas foram com essa demanda e começaram a discutir. Algumas eram do Rio Grande do Sul e outras do Amazonas e foi a partir do esporte que esse vínculo em encontros foi promovido”. 

Nas palavras de uma das lideranças dos povos mapuche, do Chile, os Jogos Mundiais “são um espaço liderado por indígenas, criado por indígenas, idealizado por indígenas com o apoio do governo e de organismos internacionais, mas concebido pelos povos indígenas”. O evento conseguiu ser uma força potente para essas populações, que, com auxílio de financiamentos públicos, tiveram a possibilidade de realizarem encontros únicos entre comunidades distintas e diversas. 

Para Fassheber, os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas “são espaços propícios para a criação de um espaço de memória, a sua própria memória de lutas e resistência”. O professor, que esteve presente no evento como antropólogo e também como fotógrafo, afirma: “Eles vão jogar futebol, brigam, querem ganhar, mas os Jogos são sobretudo um espaço para mostrarem, inclusive, para fora que existem várias sociedades possíveis”. 

Repercussões e o futuro dos Jogos

Apesar da importância ampla do evento, sua divulgação no território nacional encontrou limitações. O comitê organizador e documentos produzidos por Lucas Roque, Marcos Terena, Juan Antonio Calfin e Taily Terena para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) salientam, no entanto, a grande visibilidade do mesmo. 

Bettine conta que na época reportagens foram feitas em veículos da grande mídia, porém, muitas vezes os moradores da própria cidade de Palmas desconheciam o evento que estava sendo sediado ali.  O maior público era dos atletas indígenas que participavam dos Jogos e também de alguns veículos da imprensa internacional, fotógrafos e pesquisadores que acompanhavam e faziam a cobertura do evento. 

Para além da questão da visibilidade, a problemática do financiamento é bastante latente em eventos como os Jogos Mundiais. Sua viabilidade é dependente da entrada de verba para que se arque com custos de transporte, uniformes e estrutura. Como etnias de diferentes partes do globo deslocam-se até a cidade sede, é essencial que exista algum tipo de auxílio para esses atletas conseguirem participar dos Jogos. 

Fassheber retoma o contexto dos Jogos Mundiais e destaca: “Houve um investimento federal forte, um ministério atuante e, depois, acabou tudo. Acabou o Bolsa Atleta, acabou o financiamento dos jogos”. 

Ainda que tenham ocorrido outras edições após 2015, foi no Brasil que o evento teve maior amplitude e esse aspecto mais mundializado. Bettine pontua que “foi um evento que aconteceu e não criou nenhuma raiz. Depois, existiu uma segunda edição, mas o Brasil não mandou nenhuma delegação, dentre outros fatores, por falta de verba”. 

Dessa forma, o futuro dos Jogos ainda é extremamente incerto. A realidade pandêmica adiou ainda mais a possibilidade de concretização de eventos desse porte com as populações indígenas. Fassheber sinaliza que ao mesmo tempo que não há nesse cenário uma perspectiva a curto prazo de novos Jogos em escala mundial, aqueles realizados no contexto nacional e regional ganham força no país. Ainda que não haja uma repercussão externa dos eventos locais, existe uma importância significativa desses, ao passo que garantem às comunidades que os realizam uma visibilidade na região.

Encerramento dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas  [Imagem: Roberto Castro / Wikimedia Commons]
Mesmo que críticas sejam possíveis de serem feitas aos Jogos Mundiais devido à sua dimensão de megaevento e, consequentemente, da espetacularização, Bettine aponta que “uma sementinha foi regada ali”. Para Fassheber, esse contexto dos Jogos Mundiais constitui-se como uma “tradição inventada”. “Vários elementos são colocados para serem vistos, os Jogos assim perdem esse aspecto exclusivamente tradicional”, afirma o antropólogo.

Recuperando a obra de Johan Huizinga, “Homo Ludens: jogo como elemento da cultura”, Bettine pontua que o esporte, os jogos tem essa ludicidade atrativa por si só. Os Jogos Mundiais assim tem um potencial agregador e criador de vínculos a partir de demandas comuns compartilhadas nos espaços proporcionados e criados pelo evento. Logo, apesar de todas as críticas, é inegável que os Jogos foram capazes de articular diferentes etnias por meio do esporte. Retomar a importância de espaços como esse em um contexto de ofensiva contra os povos indígenas é reafirmar a necessidade de escuta e de concretização das demandas dessas comunidades. 

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