Para admiradores da sensação reconfortantemente desconfortante do terror, os produtos culturais japoneses sempre detiveram destaque. Produções cinematográficas como O chamado (2002) e O grito (2003) marcam a influência nipônica no cinema ocidental como um dos primeiros grandes expoentes na difusão do denominado j-horror. Existem, entretanto, diversas outras produções a serem exploradas dentro dessa categoria, sendo o subgênero dos mangás de terror um terreno fértil para experiências especiais. Ao unir a narração visual com o mistério sobrenatural, o medo humano se reconfigura em representações macabras e histórias que subvertem a realidade mundana.
Um dos ramos do estudo histórico é o da história das emoções. Peter Nathaniel Stearns, Ph.D. em História pela universidade de Harvard, em seu ensaio “Ensinando sobre a história do medo”, afirma: “Dentre as diversas emoções específicas que ensino, eu consistentemente acredito que o medo é a [emoção] mais desafiadora”. Para ele, a história do medo é mais difícil de ser acompanhada do que a da vergonha e a do amor, por exemplo, em virtude da maioria dos estudos sobre medo serem “inacabados”. Segundo Stearns, qualquer vertente de estudo possui suas forças metodológicas, mas empacam em alguma fraqueza.
No estudo da história das emoções, as pesquisas são centralizadas em um povo, tempo e espaço bem definidos, em virtude de se considerar o sentimento como um aspecto culturalmente determinado. Assim, na esfera do medo, comunidades possuem temores específicos ao contexto em que estão inseridas. Exemplo disso seria o medo do oceano durante o período das Grandes Navegações.
Entretanto, existem noções psicológicas relacionadas ao medo enquanto instinto de sobrevivência. As dimensões mais primitivas do cérebro, em especial a amígdala cerebelosa, são responsáveis por processar o sentimento de medo e, assim, ocasionar alterações corporais de adrenalina, como o aumento dos batimentos cardíacos, a dilatação das pupilas e dos brônquios. Assim que essa adrenalina é superada e o controle é retomado, uma parcela significativa dos indivíduos se sente mais satisfeita e confiante.
Isso é capaz de explicar o interesse humano pelo horror e pelas histórias de terror. Presentes, em especial, no folclore e nas tradições religiosas humanas, essas narrativas eram usadas como instrumentos para passar ensinamentos valorosos à sobrevivência e dar explicação àquilo que os conhecimentos empíricos da época eram incapazes de responder. Na modernidade, a coleção antológica de fábulas realizada pelos irmãos Grimm perto da virada do século 18 recuperou uma série de narrativas antigas que foram então utilizadas para o ensinamento moral nesse novo período.
Quando se debate esse gênero no contexto nipônico, as origens de um “legítimo” romance gótico derivam da influência desses autores ocidentais, que propulsionaram nomes como Ryonosuke Akutagawa e Edogawa Ranpo (pseudônimo que, ao ser pronunciado, é extremamente similar ao nome do autor estadunidense de O Corvo (1845)). Entretanto, já existia no Japão uma tradição literária anterior, que era muito enraizada nas lendas folclóricas clássicas. Tradições orais passadas entre gerações, elas geralmente descreviam, por exemplo, um espírito em particular ou a explicação por trás do nome atribuído a um local. E esse tipo de história se adequa perfeitamente ao contexto dos mangás de j-horror.
A construção da ambientação propícia ao terror
“O folclore reflete a experiência coletiva da sociedade e é um espelho pelo qual a comunidade constantemente se defronta”, afirma Dan Ben-Amos, presidente do Departamento de Folclore e Vida Folclórica da Universidade da Pensilvânia, em um de seus escritos. Para ele, o folclore é, simultaneamente, universal e comunal. A universalidade deriva de as histórias serem similares no mundo todo em aspectos narrativos, visuais e metafóricos. O comunal, por sua vez, é sobre a particularidade de cada produção, em virtude de estar atrelada a um sistema político, religioso, ético, entre outros.
Nesse contexto, é relevante pontuar as diferenças entre o mito e o folclore. Ainda que sejam considerados sinônimos (e muitas vezes são empregados como tal), eles detém uma série de atribuições de sentido que os separa no uso cotidiano. O mito é, habitualmente, uma narrativa fantástica e simbólica, grandiosa e bem definida. O folclore, por sua vez, é um termo ligado ao popular, ao campestre e ao anonimato.
O folclore nipônico, consequentemente, é muito embebido no xintoísmo. Espiritualidade e religião típica japonesa, o xintoísmo é pautado no culto aos denominados Kami, seres sobrenaturais que representam forças da natureza, divindades e protetores ancestrais. Diferentemente das religiões proféticas difundidas no Ocidente, o xintoísmo não possui um fundador ou escritos sagrados, o que reflete na falta de mandamentos morais religiosos. Com o surgimento do budismo no Japão a partir do século 6, houve um sincretismo entre essas religiões que hoje praticamente coexistem sem conflitos. Uma parcela significativa da população japonesa, inclusive, é adepta a ambas.
A abrangência dos Kami e o caráter espiritualista do xintoísmo edificaram o espaço no sistema de crenças popular para seres como os Yokai, classe abrangente de criaturas sobrenaturais, dentre elas algumas semelhantes a ogros (Oni), espíritos vingativos (Yurei) ou espíritos da floresta (Kodama). “Tradicionalmente, o mais próximo de um gênero literário gótico no Japão são as kaidan, histórias da tradição oral sobre fantasmas e outros seres sobrenaturais existentes desde a antiguidade”, afirma Edelson Gonçalves, doutor em história pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que enfatiza seus estudos na história do Japão moderno e contemporâneo. Ele reforça que as kaidan se converteram num gênero literário de origem plebeia e foram tema teatral popular na Era Edo (1603-1868).

Gonçalves aponta a importância do jornalista e escritor de ascendência greco-irlandesa Patrick Lafcádio Hearn para a difusão das Kaidan no Ocidente. Admirador da literatura gótica, Hearn aplicou essa estética a sua escrita e se destaca por sua habilidade em “retratar o comportamento dos personagens segundo os costumes que identificava em seus estudos antropológicos pelo país”, diferentemente da visão de um Oriente imaginário propagado por outros autores.
O historiador Gerald Figal, em sua obra Civilization and Monsters: Spirits of Modernity in Meiji Japan (em tradução Civilização e Monstros: Espíritos da Modernidade no Japão Meiji, 1999), atinge a máxima defendida pela história das emoções: os medos e anseios de cada época no Japão são inspirações para suas histórias de terror. Assim, durante a Era Meiji (1868-1912), as rápidas mudanças sociais em virtude do desenvolvimento industrial ocasionam uma reconfiguração do sobrenatural a esse contexto de modernização.
De acordo com Gonçalves, “os mangás, como se consolidaram atualmente, são um típico produto da cultura japonesa do pós-guerra, surgidos da dialética entre a arte tradicional e influências ocidentais”. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, considera-se que o artista de mangás Shigeru Mizuki reintroduz os yokai à cultura popular nos anos 1960 com GeGeGe no Kitarou. A série é derivada de uma kamishibai ⎯ espécie de teatro de rua ⎯ de 1933 escrita por Masami Itō e conta com um protagonista yokai que viaja pelo território nipônico e conhece outras criaturas folclóricas em sua trajetória. A história, inicialmente considerada muito assustadora para crianças, expunha uma nova tendência dentro dessa forma de narrativa visual.
Sobre as peculiaridades dos mangás de terror
A série de Shigeru Mizuki abriu caminho para novos artistas de segunda onda, como Hideshi Hino e Kazuo Umezu. Posteriormente, o artista moderno Junji Ito conquistou um maior alcance internacional e se tornou expoente na globalização dessas produções.
Nascido na China em 1946, Hideshi Hino é mangaká ⎯ palavra japonesa para quadrinista ⎯ e também cineasta e roteirista. Detentor de uma extensa quantia de obras publicadas, seu enfoque é a produção de histórias de terror para crianças. Consequentemente, sua arte tem tendências infantis, com formas mais arredondadas e cartunescas, até mesmo em suas representações de gore, podridão, violência e monstros. Tal estilo, com grande apelo grotesco, é conhecido como Kaiki.
Kazuo Umezu publicou seu primeiro mangá quando ainda era apenas um estudante do ensino médio. A partir de 1962, começou a desenvolver seu estilo para o terror, e em 1974 venceu o 20° Prêmio de Mangá Shogakukan, uma dos maiores premiações de mangá do Japão, pela sua obra The Drifting Classroom ⎯ a sala de aula à deriva, em tradução livre. Umezu se destacou como um dos principais nomes do gênero dos mangás de horror, tendo até mesmo uma premiação em seu nome. Indo um tanto além da estética grotesca Kaiki de autores como Hino, ele a utiliza e a reconfigura no estilo Kyofu, um terror que apela ao psicológico e irracional.
Inspirado tanto em Umezu e Hino como também em H.P. Lovecraft, o mangaká Junji Ito é, facilmente, o nome mais reconhecível e popular do gênero para a comunidade internacional. Começou sua carreira em 1987, ano em que recebeu menção honrosa no Prêmio Kazuo Umezu pelo que se tornaria a obra Tomie.
Um aspecto fundamental das histórias de Ito é o entrecruzamento do folclore nipônico com o horror cthuliano. Este é baseado no terror do impossível, do incompreensível, ao expor a insignificância e desamparo da existência humana em contraste, por exemplo, a seres cósmicos e transcendentes, como o é o Cthulhu de Lovecraft. Em uma espécie de anti-antropocentrismo, as personagens se defrontam com a insanidade, o grotesco e seres inexplicáveis. “Eles pegam algo comum e natural e o transformam em anormal e assustador. Lovecraft fez isso com uma ‘cor’, em A Cor Que Caiu do Espaço, e Junji Ito fez com a forma espiralada em Uzumaki”, afirma a professora e tradutora de japonês Thaisy Quinteiro.
Geralmente, mangás de terror são baseados em histórias curtas e há uma série de razões para essa preferência. Como mencionado, o folclore japonês é povoado pelos yokais, sendo que muitas de suas histórias são orais e, consequentemente, mais curtas. Outra razão é que o modelo possibilita que o mistério prevaleça mesmo após o fim da obra, sem ter a obrigação de explicar ao leitor as razões por trás dos eventos extraordinários representados. Para Thaisy, “não saber e não compreender é muito mais horripilante que o contrário”. Assim, o incômodo e o desconforto permanecem impregnados por muito tempo após a leitura. Para isso, são utilizadas mudanças na própria estrutura narrativa.
Diferentemente de histórias tradicionais, os mangás de terror não costumam se estruturar com apresentação, desenvolvimento, clímax e desfecho bem definidos. É uma atitude comum que o próprio clímax se configure como desfecho ou seja muito próximo a ele em estrutura. Tal atitude seria frustrante para histórias comuns, uma vez que finalizar um arco narrativo em seu ponto máximo o deixa inacabado, em aberto. Mas no contexto do terror, é relevante que as histórias sigam vivas e voltem a assombrar em momentos propícios do cotidiano.
Uma das estratégias mais peculiares do formato da narrativa visual é o virar da página. Tendo o leitor como indivíduo central dessa ação, ao contrário da letargia induzida pelo audiovisual, é uma ferramenta significativa de elemento surpresa. Com a tensão crescente do desenvolvimento da narrativa, você enquanto leitor pode ser bombardeado imediatamente com uma visão grotesca nesse simples movimento, em contraste às narrativas comuns que são apenas palavras espalhadas em um papel.
O legado de horror
O medo e a repulsa são universais. O que é responsável por tais sentimentos, não exatamente. Conforme o contexto social molda, de certa forma, o psicológico humano, certos medos são potencializados ou diminuídos e o repugnante se redefine. Muitas mudanças ocorreram na história do medo para as comunidades humanas, mas o sentimento permanece presente sob novos conceitos e representações.
Os mangás de terror são frutos do contexto histórico e espacial em que foram produzidos e recentemente têm ganhado maior visibilidade no mundo todo. Mas, ainda assim, muitas dessas obras são sequer traduzidas ao inglês, muito menos ao português ou até mesmo publicadas no Brasil, diferentemente de gêneros mais populares e difundidos como os shounen (mangás de ação e aventura) e shoujo (mangás de romance e relacionamentos em geral). Todavia, há uma sensação de transformação. “Recentemente, em parte pela popularização das obras de Ito, parece estar ocorrendo uma lenta mudança no mercado”, argumenta Thaisy. Editoras como a DarkSide e a Pipoca & Nanquim estão apostando na publicação de obras do mangaká.
A difusão internacional recente com a popularização de Ito foi capaz de fazer com que os mais interessados reconheçam o hype sobre as obras desse artista. Mas ainda há uma grande distância a outros artistas tão bons e relevantes quanto ele. “Poucos títulos chegam nas bancas, o que leva a maioria dos leitores a buscarem os scans e sites que traduzem e disponibilizam online as obras que não vêm para o Brasil”, diz Thaisy.
Ainda assim, esse subgênero detém uma relevância própria e um charme singular. A exemplo de GeGeGe no Kitarou, os mangás de terror são uma forma de manter uma cultura tradicional viva, mesmo que metamorfoseada a influências góticas e lovecraftianas. Consagra-se um legado dessa expressão artística, que funde o comunitário e universal tanto do medo quanto do folclore para criar um universo de pesadelos que não terminam quando a história acaba.
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