“Doentio”, “clandestino”, “destrutivo” e “anormal” foram todas aplicações usuais da palavra inglesa “queer”, em sua antiga origem. A sensação de estranhamento que o termo representava na época ainda era muito geral e se aplicava a qualquer um. Foi a partir de meados do século 19, segundo o dicionário Oxford, que pejorativamente tornou-se à homossexualidade masculina, para então se alastrar sobre qualquer expressão alheia à heteronormatividade.
A adição de mais uma palavra para o extenso e repetitivo vocabulário do ódio, no entanto, não foi surpreendente novidade, tampouco se sustentou inabalável (o lexicógrafo Eric Partridge destaca que o teor depreciativo era apenas exterior). Para uma comunidade tão habilidosa em subverter seus ataques, o adjetivo tornou-se não só identidade como arma. Estranhos autoproclamados, indivíduos LGBTQ+ acharam seu poder na rejeição, dita ou não dita.
Não causa espanto, então, que o horror tenha sua história em entrelace tão íntimo com o cinema queer. Bons filmes de terror abraçam o peculiar e exigem uma perpétua renovação de si mesmos, em procura daquilo que é assustador dos mais diferentes modos. A franquia Pânico (Scream, 1996-) fez isso com a metalinguagem, tal qual Corrente do Mal (It Follows, 2014) fez com sua resposta a estereótipos misóginos. As colaborações da abordagem LGBTQ+, por sua vez, também eram inevitáveis.
A frustração de imaginar a história do medo sem a presença dessas vozes é prova disso. Na literatura vitoriana, que precedeu e inspirou largamente o cinema, seriam eliminados os trabalhos de Oscar Wilde e Mary Shelley, por exemplo. Na tela grande, não existiriam as adaptações clássicas de Frankenstein dirigidas por James Whale, tampouco os banhos de sangue causados pelos cenobitas de Hellraiser – Renascido do Inferno (Hellraiser, 1987). Sobretudo, os bonecos possuídos sofreriam um grande desfalque sem Chucky e sua bela família não-conformista, criados por Don Mancini.
Além do mais, ao menos desde os anos 1970 e 1980, com sua posição antagônica ao conservadorismo dos Estados Unidos da época, o terror é um gênero de difícil alinhamento à linguagem de grupos dominantes. A brutalidade e sensualidade tão latentes em longas do tipo renegam status panfletário adequado ao fundamentalismo religioso e/ou ao tradicionalismo moral. Assim, o subtexto de horror acaba por ser campo muito mais frutífero para a vivência queer sem filtros do que qualquer outro texto no cinema mainstream palatável ao status quo.
Compõe-se, então, um campo perfeito para a exploração das sensibilidades e vivências LGBTQ+, tanto como refúgio da realidade repleta de preceitos da “norma”, como retórica às estruturas que já as categorizam como monstruosas.
Do outro lado do susto
Para Alvaro de Souza, João Neto e Luiz Machado, o caminho para canalizar suas relações ao terror como homens gays foi o projeto Esqueletos no Armário, que conta com páginas no Twitter e Instagram, além de um site e um podcast. Nessa roupagem de um debate vívido e cada vez mais discutido pela análise crítica e público, os três jovens trazem semanalmente episódios e textos que destrincham por completo grandes obras a partir de sua ótica.
Para João, “nós fãs queer sobrevivemos de migalhas, então sempre tentamos encontrar representatividade dentro desses filmes. Até mesmo quando são agressivos, ou nem tão representativos, os adotamos porque não somos tão vistos como gostaríamos de uma forma mais aberta, e procuramos subtextos e releituras em busca desse abraço”.
Segundo Luiz, o projeto nasceu da necessidade que tinha de conteúdo de horror voltado para a comunidade LGBTQ+, dada a desigualdade na representação entre entusiastas do tema. “Eu sempre vi no terror uma heteronormatividade, mas vejo agora isso mudando, com mais mulheres e pessoas gays. Como eu não me via nesses produtos, nunca me vi representado em algumas das falas dos aficionados pelo gênero”.
O jornalista relata que, quando foi se entendendo como menino gay, “a cinefilia e isso acabaram convergindo. Tudo pode ser sobre tudo com a argumentação certa. Aprendemos a ver o que talvez não seja proposital, mas existe”.
O exemplo que dá é Carrie – A Estranha (Carrie, 1976): “acho que Stephen King não percebeu que estava escrevendo o que é provavelmente uma das narrativas queer mais fortes da história. Sua adaptação é um filme que tem muitos subtextos que passam despercebidos para pessoas cisgênero e heterossexuais”.
A história, afinal, relata a vida de uma adolescente e sua mãe religiosa fanática e repressiva. Carrie (Sissy Spacek) se sente deslocada, e a primeira expressão de sua sexualidade (a famosa cena de menstruação) a deixa confusa, atacada por inúmeras garotas. Enquanto passa a descobrir e aceitar o que a faz especial, a jovem lida com a crueldade de todos ao seu redor.
Para Luiz, o baile representa a revolta que tantos desejam. “Quando eu estava na escola, meu sonho era ter telecinese e dar o troco em todo mundo que me fazia sentir muito pior por ser diferente”.
Alvaro, por sua vez, destaca que “o terror costuma colocar em cheque o que a sociedade considera seguro”: coisas como o casamento monogâmico, a família, a Igreja e, claro, a sexualidade. De acordo com o estudante de história, “é um gênero que dialoga muito com nossas ansiedades. É muito fácil se colocar no lugar desses monstros trágicos, ou das Final Girls de slashers, que devem desafiar os preceitos de feminilidade para sobreviver”.
De acordo com ele, não é necessariamente ruim que a representação venha através desses personagens. “Devemos olhar para os monstros de uma forma mais empática, já que eles são vistos como ameaças à sociedade heteronormativa, e a esses preceitos ocidentais e patriarcais da classe média cristã. Deveríamos enxergá-los até como algo um tanto empoderador de certa forma, como possibilidades de existência para além deste mundo que tenta vender o ‘natural’ e o ‘correto’”.
Das trevas à claridade (e de volta às trevas)
Fora da ficção, pessoas LGBTQ+ não são assombrações ou criaturas. Também não possuem uma agenda de dominação global, por mais que um “kit gay” assombre conservadores mais que o “Livro dos Mortos” de Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio (Evil Dead, 1981). Mulheres e homens trans, por exemplo, não são brutais assassinos atormentados por múltiplas personalidades tal qual Norman Bates (Psicose) e Buffalo Bill (Silêncio dos Inocentes).
A comunidade pode, no entanto, se apropriar dos rótulos ofertados e construir sua própria ótica responsiva, seus próprios bichos-papões e salvadores, pela criação e interpretação.
É um processo bem ilustrado pelo arco narrativo do protagonista de Raça das Trevas (Nightbreed, 1990). No longa, ao ser jogado a um mundo de monstruosidades, Aaron Boone (Craig Sheffer) não apenas se descobre nativo, como também entra na batalha contra forças policiais e clericais que querem a destruição de seu povo.
Otto; ou Viva a Gente Morta (Otto; or, Up with Dead People, 2008), resquício do punk queer no século 21, sintetiza melhor esse viés ao dizer que “uma pessoa que funciona ‘normalmente’ em uma sociedade doente é doente por si mesmo”.
Através de fantasias do tipo, apreciar a monstruosidade — não pelo auto ódio, mas pela recusa de assimilação social — é de imponência extrema. Tal lógica tão natural a esse universo não só possibilita a reivindicação sociopolítica livre de filtro opressivo, como também o relato de histórias extremamente sensíveis sobre solidão, amor, desejo, repressão e descobrimento.
Como diz Harry M. Benshoff, PhD em estudos da crítica, em seu livro “Monsters in The Closet: Homossexuality and the Horror Film” (Monstros no Armário: Homossexualidade e o Filme de Horror, em tradução literal), é inegável o “potencial revolucionário de se fazer criaturas frente às mesmas forças ideológicas que simultaneamente os criam e demonizam”.
Mas que monstros?
Para reclamar representações construídas, no entanto, é necessário identificá-las. Andrew Scahill, autor e especialista em análise crítica do terror, delimita três arquétipos principais à vivência queer no gênero ao longo dos anos: ameaça aos outros; ameaça à cultura e a abominação interna lutando para emergir.
A partir de cada possível vilanização queer nascem novos pontos de referência, e deles, heróis.
Tranquem os armários: ameaça aos outros
Logo no início de sua existência, o cinema de horror teve que enfrentar obstáculos. O Código Hays, junção de diretrizes de censura feitas para proteger a imagem da indústria cinematográfica, limitava substancialmente as possibilidades narrativas. Crime e imoralidade deveriam ser sempre punidos; apenas “padrões de vida corretos” poderiam ser representados e o comportamento sexual era desprezado, assim como “perversão” e blasfêmia.
Antagonistas em sua maioria, então, como a legião de monstros da Universal Studios nos anos 1930, estavam fadados à punição e à representação negativa — mas cineastas ainda acharam técnicas para burlar as restrições. Ao invés de ceder ao que era imposto, diretores como o assumidamente gay James Whale produziram filmes repletos de subtexto com maestria.
O Monstro (Boris Karloff) de Frankenstein (1931) representa ameaça aos outros, especialmente à azarada menina que acidentalmente joga em um lago, mas de fato não é o vilão da obra — seu nome nem está no título — e a agressão mais desumana parece ser a contra ele.
A criatura, na verdade, age como age devido a seu “cérebro anormal” e à criação por um cientista ambicioso e cruel (não muito diferente dos eugenistas da época) que, ao não a compreender, a agride e reprime. Ela é, então, obrigada a se esconder e viver o retrato melancólico da ocupação de um mundo tão avesso à sua presença.
Quando o longa chega à sua conclusão e o monstrengo é obrigatoriamente derrotado, a prolongada cena de linchamento é dolorosa e perturbadora, especialmente quando sobreposta à imagem do cientista que o criou e condenou — vitorioso, em repouso, com a esposa ao seu lado.
Quatro anos depois, A Noiva de Frankenstein (The Bride of Frankenstein, 1935), do mesmo diretor, estreou. A sequência anunciava sua prerrogativa logo no início: “o público merece algo mais forte do que histórias de amor”.
Dessa vez, após sobreviver ao ataque final do longa precedente, a criatura vaga pelos campos sem rumo em particular, assustando por acidente crianças e mocinhas desavisadas. É quando encontra um eremita cego (O.P Heggie) que o monstro brevemente conquista o conforto.
O homem não se assusta nem o julga. Durante o tempo que passam juntos, agradece a Deus pela companhia e chega a alfabetizar a criatura. Graças à identificação mútua, criam seu próprio gueto, onde vivem em segurança até a disrupção de dois homens, que não só perseguem O Monstro como acabam por atear fogo na casa do camponês.
Nos minutos finais do filme, ao se juntar à aguardada noiva com esperanças de reencontrar o companheirismo, O Monstro é rejeitado. A Noiva (Elsa Lanchester) deriva dos mesmos processos que o geraram, mas sofre da interferência de outro cientista, Pretorius (Ernest Thesinger), que com suas técnicas rebuscadas, consegue deixá-la o mais semelhante possível a um ser humano.
Apesar do parentesco visual ao Monstro, ela é essencialmente diferente. O glamour da personagem eclipsava sua peruca diferenciada e seus maneirismos animalescos. O rosto de uma estrela de Hollywood indicava outro medo: a assimilação ao agressor.
Ao renegá-lo, A Noiva abandona também seu status de monstruosidade, enquanto procura refúgio nos braços do Doutor Frankenstein. A anormalidade que lhe foi roubada a impede de simpatizar com o noivo, que é deixado sozinho mais uma vez. A partir da ameaça aos outros, os filmes de James Whale transparecem a dor de ser, em torno, ameaçado.
Tampem olhos e ouvidos: ameaça à cultura
Para além da integridade física, no entanto, a que nível chega o impacto da comunidade LGBTQ+ nos costumes imateriais do contrato social? Para o cinema Macarthista dos anos 1950, qualquer escape da heterossexualidade era ligação direta ao comunismo e à ameaça do estilo de vida americano estimulado através da maior parte do mundo ocidental.
Os indícios de homossexualidade, então, eram parte recorrente de contos preventivos, histórias sobre tudo aquilo que atormentava jovens inocentes em carros conversíveis. A tentativa de repúdio, no entanto, continha a semente da própria destruição ao intensificar a visibilidade sobre tais temas. Aliada aos precedentes estabelecidos, como o citado Frankenstein, essa investida cinematográfica colaborou à relação entre a temática e as questões de gênero e sexualidade, enquanto os primórdios de um movimento LGBT+ surgiam.
Vinte anos depois, The Rocky Horror Picture Show (1975), assassinou o pudor de vez ao contar a história do casal Brad e Janet (Barry Bostwick e Susan Sarandon), dupla convencional retirada das mais frígidas histórias de amor, em conflito com a figura subversiva do Doutor Frank-N-Furter (Tim Curry).
O personagem de Curry tem imensa força disruptiva desde o primeiro momento em tela. “Nascido em Transsexual, Transilvânia” ele anuncia. Em sua ligeira navegação pela identidade de gênero e sensualidade, o cientista abala para sempre as vidas dos visitantes inesperados e caretas.
Frank faz sua própria criatura — um fisiculturista loiro reduto de seu fascínio, Rocky (Peter Hinwood). Então, seduz ambas as partes do casal visitante — o que leva Janet a quebrar seu voto de castidade em um número musical sensacional — e sequestra o acadêmico reacionário que servira de mentor a Brad, Everett Scott (Jonathan Adams).
Tendo desestabilizado todos os preceitos dos protagonistas do musical de horror, Frank-N-Furter segue um caminho similar àquele determinado pelo falecido Código Hays e é punido. Mas sua partida, ou derrota, é diferente de qualquer outra do tipo. Enquanto performa as canções Rose Tint My World e I’m Going Home, acompanhado por todo o elenco, o personagem parece muito mais um mártir sendo velado por seus seguidores do que vítima do ódio de seus opositores.
Janet o agradece (“é uma alegria que Frankie trouxe, sua luxúria é tão honesta”), Brad abraça sua sensualidade de corpete e meia arrastão e Rocky canta sobre conforto orgásmico. Em troca, o cientista clama: “não sonhe, seja”. Em sensível homenagem à expressão e devaneios próprios, Frank rejeita reduzir suas qualidades oníricas ao conforto esperado de definições claras e inofensivas.
Frente a isso, o Doutor Scott entrega de cara séria a fala mais carregada de sarcasmo e pertinência do filme: “temos que sair dessa armadilha antes que a decadência esgote nossas vontades! Tenho que ser forte e tentar aguentar… ou então enlouquecerei, e minha vida será vivida… pelas emoções!”.
Sua resistência, no entanto, não é de muito proveito. O tom não conformista, absurdo e exacerbadamente queer do filme não só felizmente altera os arquétipos tradicionais representados em tela, mas também afeta o próprio espectador. É difícil não querer ser parte do universo de Frank-N-Furter, tanto quanto é difícil tirar Touch-A, Touch-A Touch Me da cabeça.
Fechem os corpos: o monstro interno
Por fim, chega-se ao mais temido: a ameaça subcutânea. Aquela que é acordada dentro do protagonista, que então navega entre reprimir sua maldição e inevitavelmente vê-la desenvolver-se. Um recurso tão possivelmente útil ao preconceito quanto proveitoso a narrativas nuançadas e interessantes.
Nessa linha, foi produzido Hora do Pesadelo 2 – A Vingança de Freddy (A Nightmare on Elm Street 2: Freddy’s Revenge, 1985), ridicularizado pela homofobia e machismo na época de seu lançamento e hoje clássico cult, com apelo especial ao público LGBTQ+.
Nele, Jesse Walsh (Mark Patton), um atleta do ensino médio, se muda para a mesma casa outrora habitada por Nancy Thompson (Heather Langenkamp), a ilustre protagonista do longa antecessor. Lá, o jovem passa a ser usado como receptáculo para que o temeroso Freddy Krueger (Robert Englund) tome conta de seu corpo e salte do mundo dos sonhos a fim de atormentar a realidade que quiser.
Seu primeiro ponto de parada? Um bar gay fetichista, com direito a traseiros espancados antes da morte. O filme é uma clara alegoria, que o roteirista, David Chaskin, chegou a alegar ter intenção homofóbica.
Quanto a isso, David elaborou: “eu pensei na demografia desse tipo de filme (jovens homens heterossexuais) e tentei imaginar o que os assustaria profundamente. Sonhos que os fazem questionar sua sexualidade pareceram a resposta óbvia para mim”.
Segundo o escritor, “Jesse, no final, consegue controlar o monstro dentro de si (a homossexualidade) com o amor de uma boa mulher. Talvez esse filme devesse ser exposto em sessões evangélicas de desprogramação em que tentam ‘consertar’ pessoas gays em americanos regulares”. Anos depois, disse que estava fazendo uma piada.
O conteúdo tão explícito (ainda que intencionalmente sutil) do filme foi abraçado e é ainda celebrado pelo público LGBTQ+, completamente distante de qualquer conversão. Por conta disso, Patton, o protagonista que desistiu da carreira após a resposta ao longa, produziu um documentário sobre sua relação com a história e as dinâmicas do público queer dentro do horror, Scream, Queen! My Nightmare on Elm Street (2019).
O filme original, junto ao documentário, viajou pelos Estados Unidos em diferentes sessões e convenções, e Mark estava lá, celebrando o claro homoerotismo de sua dança no primeiro ato. Com a capacidade de desconsiderar conclusões insatisfatórias e focar no que interessa de fato, novas interpretações e laços foram formados.
Para muitos que relatam suas experiências no documentário, o longa foi o primeiro contato com temas homoeróticos, infiltrado nas prateleiras de VHS de diversas casas por ser visto como um slasher bobo. Para um grupo em particular, Jesse foi sua primeira queda. Já outros entrevistados o destacam como a observação inédita de um protagonista que não carrega os preceitos de masculinidade como escudo.
Freddy pode não ser a homossexualidade derrotada, mas um grande valentão. Jesse, mesmo emasculado de acordo com o público heteronormativo, pode muito bem ser um herói. De qualquer jeito, mesmo que a narrativa seja vista como tentativa de ataque, do que importa à audiência quando, na frente da tela, uma Drag Queen veste o mesmo suéter?
Gritos do Presente e Futuro
Com o decorrer dos anos, e a renascença popular que o terror enfrenta com enormes sucessos mais representativos, a vertente queer ganha cada vez mais visibilidade. João, do Esqueletos no Armário, diz que “é interessante ver como amadurecemos, e daí evoluirmos cada vez mais para que o gênero seja inclusivo. Temos o potencial e hoje mesmo já existem várias narrativas intrigantes sobre o tema”.
Hellbent (2004), “o primeiro slasher gay já feito”, ignora quase que por completo qualquer imposição da homofobia na vida dos personagens. Nele, o assassino tem índole alguma, apenas uma máscara de látex que claramente alude ao sadomasoquismo.
De Acampamento Sinistro (Sleepaway Camp, 1983) para Deixe Ela Entrar (Låt den rätte komma in, 2008) é vista uma evolução sensibilizada do retrato da juventude transgênero. O primeiro citado culpa a brutalidade dos assassinatos de sua protagonista na criação que teve por pais homossexuais e uma tia que a levou à transgeneridade. O segundo é uma das mais lindas histórias de amor infantil. Quando Eli (Lina Leandersson) pergunta a Oskar (Kåre Hedebrant) “você ainda gostaria de mim se eu não fosse uma garota?”, ele simplesmente responde “acho que sim”.
No nacional As Boas Maneiras (2017), o lesbianismo é, principalmente, uma das facetas da mulher-loba de Marjorie Estiano, que cultiva um belo relacionamento e família com Clara (Isabél Zuaa). Em Freaky – No Corpo de Um Assassino (Freaky, 2020), a questão da identidade para além do binarismo de gênero é tratada com sensibilidade e naturalidade.
Já o canadense Spiral (2019) relata a história de um casal homoafetivo cujo monstro enfrentado é a heterossexualidade opressiva. O foco em um casal inter-racial leva o filme a abordar não só a homofobia, como também suas diferenças quando experienciada por brancos e negros.
Todos esforços robustos que agora adentram o mainstream se alimentam de décadas de cinema. Décadas nas quais os olhos não necessariamente se voltaram ao terror queer, mas nas quais ele persistiu e se manteve genuíno e disruptivo como se propôs, ou mesmo foi involuntariamente. Não são os portões dos estúdios que se abrem para acolher tais potencialidades narrativas, mas elas que estouram os filtros impostos sobre a expressão artística e não deixam opção senão sua existência — apontando (e decepando) os dedos que quiserem.
Talvez membros da comunidade se vejam forçados a encarar sua vulnerabilidade desde cedo. Talvez sejam mais equipados para encarar monstros, já que estes se apresentam a eles com certa regularidade. O horror, um mundo fantástico onde ser fundamentalmente diferente do cotidiano é a regra, oferece conforto em seus cantos escuros e chuvas de tripas. Pessoas LGBTQ+ enfrentam muito pior.
Em Pânico 4 (Scream 4, 2011), um dos personagens tenta se salvar dizendo ao assassino que é gay, já que esse arquétipo dificilmente morre em slashers (dada sua ausência explícita em vários roteiros). Não funciona e ele ainda é esfaqueado pelo impiedoso Ghostface. A audiência ri, mas a comunidade LGBTQ+ ri mais forte. Sua morte, afinal, é óbvia depois de tal falácia. O povo queer sempre esteve no terror, seja qual for o lado da faca, ou da câmera.
Gostei das referências, acho que poderia ter citado Brinquedo Assassino e comentado a representatividade.
Em Pânico 2, ñ vou lembrar agora com detalhes mas quando a Sidney diz que um dos seguranças é gay também leva à uma questão social mais pra frente do filme quando ele morre. (Se eu achar a informação decente eu trago pra cá).
Tem muita coisa no texto que é uma associação ressignificação pessoal né? Como no caso de Carrie, né? Onde acredito que Stephen King ñ teve intenção de fazer alusão a homossexualidade mas de certa forma quem é LGBTQIA+ pode acabar se identificando.
Aproveitando Stephen King, em muitos de seus livros ele usa esse recurso da homossexualidade como terror, ameaça (em IT acontece muito), associando a abuso e tal e eu sempre achei meio homofóbico.