Jornalismo Júnior

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Unhas e outras de José Mojica Marins

Antes de ser personagem quase folclórico, Zé do Caixão é criação de um pioneiro do cinema brasileiro

“Eu sei que você não gosta de mim. Eu também não gosto de você! E talvez, na sua ignorância, julgou que estivesse livre de mim, mas não está! Ou melhor, nunca estará! Por que você não tem coragem suficiente para desligar o televisor? Se você me detesta, se me ridiculariza perante seus amigos, por que não se liberta de mim desligando o televisor e indo dormir?”

André Barcinski e Ivan Finotti, Maldito

 

Assim Zé do Caixão, aliás Josefel Zanatas, aliás José Mojica Marins, recepcionou seus telespectadores em 1968, no primeiro episódio de “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, na TV Tupi. O programa era uma espécie de sucessor de outra atração estrelada por Mojica na TV Bandeirantes, “Além, Muito Além do Além”, em que o cineasta, trajado como seu personagem mais famoso, introduzia vários episódios de horror, à semelhança de programas estrangeiros dos anos 1950, como “The Vampiria Show”. A Tupi havia angariado um pouco modesto rol de talentos para uma atração noturna com pegada de “filme B” — atores já famosos do teatro e cinema, como Lima Duarte e Irene Ravache, estavam sob a direção de Antônio Abujamra, que já havia despontado como um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro. O objetivo era dos mais simples: Mojica havia estourado com Zé do Caixão, e parecia a hora ideal para explorar todo o potencial lucrativo do personagem.

E não eram só as telas de TV e cinema a ver rufar a longa capa preta de Josefel Zanatas. A segunda metade da década de 1960 viu uma profusão de produtos relacionados à criação de Mojica: Zé aparecia em programas de rádio, tinha aventuras contadas em histórias em quadrinhos, era entrevistado em frente a plateias incrédulas de programas de auditório, teve a cara estampada em rótulo de cachaça, vendeu perfume.

Frente a essa profusão comercial e midiática, não espanta que muitos se lembrem mais do Zé da cultura popular, do programa de calouros, das entrevistas bizarras. Mas, antes disso tudo, há aquela que talvez seja a primeira cinematografia de horror do cinema brasileiro. Depois de dois longas sem muito sucesso, José Mojica Marins, cineasta autodidata em pindaíba econômica, encampa o camp e estreia seu personagem mais famoso em 1964 com À Meia-Noite Levarei sua Alma. A trilogia se completa com Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967) e Encarnação do Demônio (2008); entre a segunda parte e a conclusão, uma série de filmes horripilantes, metalinguísticos, pornográficos.

Abaixo, uma fatiazinha da biografia e da cinematografia desse personagem que é autor, ou desse autor que é personagem de si próprio.

 

Em cena em preto e branco, com unhas grandes, Zé do Caixão aponta os dedos do meio e indicador para a câmera.
Zé em À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964) apresenta seus primeiros dois dedos de prosa. [Imagem: Reprodução/Looke]

 

Se o inferno existisse, eu iria para lá com os próprios pés. Mas o sangue é imortal!”

Comer carne em uma Sexta-Feira Santa é seu primeiro grande ato de maldade. Pelo menos nas telas: Maldito, a biografia de Mojica por André Barcinski e Ivan Finotti, relata o pesadelo que deu origem a tudo: deitado num jardim, Mojica sente uma figura tétrica se avolumar ao seu lado… Seus contornos pouco a pouco vão ficando visíveis… A figura tem suas exatas feições; é ele mesmo quem o encara! O duplo o carrega através do jardim — que se revela não um jardim, mas um cemitério — até uma cova aberta. Talhado na lápide: José Mojica Marins 1936-….

Ser levado à própria cova por seu clone pode ser encarado como mau agouro por alguns. A Mojica, deu-lhe a ideia de filmar horror — gênero que, em que pese toda a cultura popular brasileira de mitos e lendas sobrenaturais, havia sido pouquíssimo explorado pela cinematografia nacional. Depois de testes infaustos com atores amadores, Mojica decide: é ele mesmo quem vestirá a cartola e a capa do protagonista de seu filme. Seu nome, talvez estranho para um horror, mas que ressoa brasilidade: Zé do Caixão (mais tarde, nos é explicado que se chama, na verdade, Josefel Zanatas, mistura de “José”, “fel” e “Satanás”). Sua grande obsessão: ter o filho perfeito para a “continuidade do sangue”.

Ninguém consegue parar Zé em sua empreitada: já no primeiro filme, prova ser o terror da cidadezinha interiorana não identificada onde trabalha como coveiro, angariando entre suas vítimas conhecidos, inimigos, amigos e a própria esposa Lenita (Valéria Vasquez). O segundo filme, com direito a uma cena em cor em um inferno gelado presidido pelo imperador Nero (também Mojica) vê a obsessão de Zé apenas aumentar: na busca por uma “esposa perfeita”, sequestra e joga às cobras uma meia dúzia de mulheres. O exagero da premissa (que, por vezes, descamba a uma comédia slapstick, principalmente nas cenas em que Zé é perseguido por almas penadas a pagar pelos seus pecados) pode até parecer simplório a uma primeira vista, mas as primeiras aparições de Zé do Caixão nas telas escondem alguns temas brasileiríssimos.

Nada de condes encastelados ou masmorras transilvânicas. A cidadezinha da funerária de Josefel Zanatas é tão genérica que é universalmente brasileira — podemos imaginar a história se passando em qualquer rincão de Pindorama. Zé zomba das superstições do povo, de uma religiosidade tão brasileira que não pode ser completamente católica (Antônio, o amigo [interpretado por Nivaldo de Lima] que Zé acha perdidamente carola e caxias, é o mesmo que vai se consultar com uma “cigana”). Também abusa dos frequentadores do boteco da cidade, que crê serem fracos e acovardados (numa das cenas mais fortes do primeiro filme, Zé ataca um deles com uma coroa de espinhos em miniatura que havia tirado de uma imagem de Jesus). Zé do Caixão, apesar de ser coveiro, se arvora a patamares aristocráticos, dos quais capa e cartola são a coroação kitsch.

 

Em cena em preto e branco, Josefel Zanatas aparece gritando, com uma onda sonora branca cobrindo sua face.
Letreiros caóticos, inferno em tecnicolor: Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967) continua a saga de Josefel Zanatas. [Imagem: Reprodução/Looke]
A aristocracia brasileira, seu coronelismo, seu racismo, seu desdém pelo “povo”: estão aí os ingredientes de Mojica na cocção do principal personagem de sua carreira. Mas Zé não passa incólume: o grande vilão encontra sua perdição ao final de ambas as fitas (com direito a uma mensagem religiosa nada sutil ao fim de “Esta Noite…”, cortesia da Secretaria de Censura, retalhadora-mor de filmes nacionais durante os anos 1960 e 1970).

Com todo o sucesso nas telas, Mojica não poderia deixar de aproveitar a oportunidade e tentar formar seu sonhado pé-de-meia. É o momento de aceitar todo tipo de convite para entrevistas e programas, interpretando o personagem mesmo fora das telas de cinema. O interesse por Mojica existia, mas o que o público queria mesmo ver era Zé do Caixão — criatura sobrepujou criador. É nesse sentido que Zé pode ser qualificado como “transgressor e reacionário”: sádico, machista e condenado em filmes com claro tom moralizante; lúdico, insólito e amado fora das telas de cinema, arregimentando uma legião de fãs que o adoram apesar de tudo.

A confusão entre José Mojica Marins e Zé do Caixão havia começado. Nada mais poderia separar os dois aos olhos do público.

 

Cartola, capa preta, barba, cada puta unha desse tamanho!”

“Zé do Caixão não existe!”, ênfase no “não” de Mojica.

Um spot entra em curto, soltando fagulhas e fumaça.

“Acho que ele não gostou muito da sua declaração”, conjectura um dos jornalistas que o entrevistava, irônico e um tantinho desconfiado.

Essa cena já nos primeiros minutos de Exorcismo Negro (1974) é uma espécie de prenúncio de todas as transformações pelas quais passaria Zé do Caixão durante os anos seguintes. Com o sucesso de “À Meia-Noite…” e “Esta Noite…”, a segunda metade dos anos 1960 já havia visto Zé em diversas mídias e produtos. O convite para estrear programas nas TVs Bandeirantes e Tupi, os quadrinhos roteirizados por Rubens Lucchetti, os reclames televisivos e a proliferação de produtos que estampavam barba, cartola e capa de Josefel Zanatas ajudariam Mojica a lucrar com o personagem — e, principalmente, haver um pouco do dinheiro que tinha deixado de ganhar com as decisões apressadas sobre a distribuição dos filmes.

Esse primeiro passo na popularização da personagem aconteceu concomitante à adoção de Mojica por nomes já estabelecidos no cinema nacional (como Glauber Rocha) e, principalmente, pelo cinema marginal e pela turma da Boca do Lixo. A partir de então, sua carreira se entranha a nomes como Ozualdo Candeias, Luis Sérgio Person, Carlos Reichenbach e cia.

Trilogia do Terror (1968) e Ritual dos Sádicos (filmado em 1969, mas só liberado pela censura em 1983, quando recebe o título de O Despertar da Besta), ambos filmes episódicos, são os dois principais longas dessa nova fase da carreira de Mojica. Trilogia traz apenas um episódio dirigido por Mojica; os outros dois ficaram a cargo de Ozualdo Candeias e Luis Sérgio Person, inaugurando de vez a cooperação entre os cineastas do “cinema marginal” e Mojica. Ritual, completamente dirigido por Mojica e roteirizado por Rubens Luchetti, o autor pulp de Ribeirão Preto que já havia escrito alguns números dos quadrinhos do Zé, é o primeiro grande metacomentário na carreira do cineasta. Além do próprio Mojica aparecer como ele mesmo, um dos episódios do longa traz um meio-psicólogo-meio-cientista-louco que submete uma turma de jovens a situações limites como forma de testar a influência do instinto na mente humana. Uma das situações é justamente assistir a Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver”.

Exorcismo Negro talvez seja o mergulho de maior fôlego na metamitologia de Zé do Caixão. Lançado na onda de O Exorcista (The Exorcist, 1974) a partir de um roteiro de Luchetti, Mojica retorna como Mojica em uma trama que o leva a enfrentar sua própria criação quando atividades paranormais começam a assolar a família de um amigo. Zé do Caixão não é mais o coveiro de uma cidadezinha interiorana: em Exorcismo Negro, Zé já toma ares de ser sobrenatural, em uma metáfora sobre o peso e a importância que o personagem já tinha na carreira de seu criador. Tem um tom bem diferente do “horror de cidadezinha” dos primeiros filmes, ou mesmo da releitura marginal de Ritual dos Sádicos: um comentário (talvez mais de Luchetti do que de Mojica) um bocado mais intelectualizado sobre obsessões, perdição, neuroses — enquadrado como um embate criador-criatura.

Demônios e Maravilhas (1980) já é Mojica sopesando sua carreira. O filme, feito em parceria com seu filho Crounel Marins, é uma mistura ainda maior de elementos: a trilha, que vai de Pink Floyd a Philip Glass, passando por Vangelis, emoldura a epopeia quase mítica de José Mojica Marins, em suas tentativas de se manter cineasta em um país de terceiro mundo. O tratamento é bem diferente de Exorcismo Negro: enquanto este era uma espécie de autoficção, mantendo-se no gênero horror, Demônios e Maravilhas mais se parece com um documentário.

Aqui, já temos mais ou menos formado o “mito do terceiro filme” da trilogia Zé do Caixão. Encarnação do Demônio, de fato, foi adiado diversas vezes desde os anos 1960, até passar por um longo processo de produção em meados da década de 2000. Demônios e Maravilhas, apesar de terminar em nota positiva, documentando a legião de jovens fãs que Zé ainda tinha naquela boca da década de 1980, pouco o ajudou a reviver o personagem nas telas de cinema: Zé do Caixão continua apenas em sua existência paracinematográfica, enquanto Mojica se conforma em dirigir um par de fitas pornográficas por alguns trocados.

 

Mojica aparece tragado por neve branca, de olhos fechados e somente com parte do olho e da testa visíveis.
Mojica tragado pela neve — e por seu próprio personagem — em Demônios e Maravilhas (1980). [Imagem: Reprodução/Looke]
Encarnação do Demônio só teria seu lançamento oficial em 2008. A epopeia da busca por um terceiro filme chega ao fim, não sem antes fazer jus à fama de filme maldito: Jece Valadão, que interpreta um policial em vendetta pessoal contra Zé, morre antes mesmo de completadas as filmagens. Adriano Stuart, que já havia trabalhado com Mojica nos anos 1970, encarna um segundo tira para encobrir os espaços no roteiro deixados por Jece (e é quem pronuncia a sumária e acurada descrição de Zé que encabeça esse seção do texto); figuras como Zé Celso Martinez Corrêa e Helena Ignez completam o rol de artistas ligados à contracultura brasileira na película. Mas, apesar de um ou outro nome já conhecido, o fechamento da trilogia Zé do Caixão é bem diferente dos demais: assim como Esta Noite… e À Meia-Noite… jogavam com as crenças e as neuroses dum Brasil dos anos 1960, Encarnação do Demônio é um reflexo de seu tempo.

O Zé de Encarnação… é aquele lido por uma nova geração de aficionados por horror, por uma leva de fãs de filmes extremos formada nas décadas de 1980 e 1990 que viam Mojica como a pérola nacional desse gênero de que tanto gostavam. Não é à toa que Encarnação… seja muito mais torture porn à Jogos Mortais (Saw, 2004) do que uma continuação estética dos outros filmes de Mojica: ali, o processo de deglutição de Zé do Caixão já estava completo. Era uma figura do imaginário popular digerida pela nova leva de brasileiros. Escusado pensar em Oswald de Andrade e no bispo Sardinha.

 

Favela, garagem, biboca (porra)”

Mojica passa as décadas de 1980 e 1990 em semiesquecimento. O cineasta brasileiro que praticamente inventou o horror no país se transforma em uma figura nichada — cultuada por fãs leais, mas filmando pornografia para tirar uns trocados. Eduardo Santana, idealizador do festival de cinema fantástico Cinefantasy, avalia a importância de Mojica no cinema de gênero nacional: “na minha geração, eu acredito que o Mojica é o grande nome. Ele é o precursor, sim, do cinema de gênero da década de 60. Você tem relatos de filmes como O Jovem Tataravô , tem algumas brincadeiras do fantástico, até com o Mazaroppi, mas tudo do lado da comédia. Mas, quando se pensa em cinema fantástico, quando se pensa em cinema de horror, vem o Mojica”.

Os anos 1980 e 1990 também foram aqueles em que as figuras de Mojica e Zé do Caixão se uniram de vez e renasceram como um personagem mitológico nacional. As aparições em programas de TV — como nos anos 1960 — nunca parariam completamente, e Mojica ainda apresentaria, em 1996-7, o “Cine Trash” na Bandeirantes. Essa presença midiática nunca teve a mesma força revolucionária do que os primeiros filmes, mas serviram para manter a chama acesa — merecendo até uma menção-homenagem em música do Sepultura. Quando Encarnação do Demônio foi finalmente produzido, o roteiro foi assinado por Dennison Ramalho, diretor do curta Amor só de Mãe (2003) que chegaria a ser uma das principais vozes da nova geração do horror nacional.

A face desse novo cinema de horror brasileiro poderia ser radicalmente diferente, não fosse o trabalho pioneiro de Mojica. A jornalista, pesquisadora de cinema e professora da Anhembi Morumbi, Laura Cánepa, explica que, antes de Mojica, o horror brasileiro raramente tentava ser “nacional”: “os filmes, hoje, fazem um esforço grande, consciente mesmo, para ter uma personalidade própria, para serem histórias que se passam no Brasil, com questões brasileiras, com personagens brasileiros, situações que dizem respeito à nossa realidade”. Com Zé do Caixão, passou a fazer sentido ambientar produções em cenários brasileiros, sejam eles alguma cidadezinha como em À Meia-Noite, ou uma metrópole, como em Ritual dos Sádicos.

O Cinefantasy é um exemplo desse nosso cenário de horror atual — traz cineastas do mundo todo, mas não abandona a brasilidade. Para Eduardo Santana, a influência de Mojica é mais do que simplesmente sentida: a primeira coisa que fez em sua entrevista à Jornalismo Júnior foi mostrar o “troféu José Mojica Marins”, principal premiação do festival. É uma mão que aponta para cima, como que tentando escapar — um tanto como as que surgem do chão sepulcral para arrastar Zé ao inferno em Esta Noite…. É uma recriação tecnológica da mão de Mojica, que usou de um scan da mão real. As unhas, de fato, e como sempre, estavam afiadíssimas.

 

*Créditos da capa: Reprodução/Looke

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