Por Luana Lima Mendes (luanalimamendes@usp.br)
O ato de animar é dar alma a algo sem vida ou movimento. Para além da reflexão subjetiva, o termo animado realmente possui tal significado. Com origem latina e derivação de anima, a animação, ou animatio, é o ser animado. É assim que a produção artística se aproxima de seu sentido e direciona emoções ao espectador. Indiferentes a idade, gênero e nacionalidade os sentimentos instigados pelas animações são características que universalizam o público dessa arte.
Em entrevista ao Cinéfilos, o diretor do seriado e do longa de mesmo nome Meu AmigãoZão (2009 – 2014), Andrés Lieban, e o cineasta e animador do curta-metragem O Divino, de Repente (2009), Fábio Yamaji, revelam o cenário por trás da animação brasileira. Eles destacam as transformações em meio à revolução tecnológica e ao desaquecimento dos investimentos à cultura no país.
“Os sentimentos são universais a ponto de conteúdos permanecerem interessantes e relevantes mesmo quinze anos após terem sido lançados.”
Andrés Lieban
Origens
Apesar da origem no teatro de sombras chinês e, posteriormente, em séries de imagens que trabalhavam a ilusão do movimento na França do início do século 19, as animações não se limitaram a certos países, idades ou conteúdos. Globalizando e renovando seus dispositivos de criação, as produções audiovisuais faziam uso do novo mundo que surgia em vista, experimentando a escritura do movimento.
Foi o caso da primeira animação brasileira exibida nos cinemas, Kaiser (1917), produzida pelo cartunista Álvaro Marins, mais conhecido como Seth, e divulgada inicialmente no Rio de Janeiro. Animando a tentativa do controle sobre o mundo de líderes das potências econômicas da época, a crítica do curta-metragem ressaltou o globo que cresce e engole a humanidade, exemplo da única imagem preservada da obra.
É importante ressaltar que o curta é considerado a primeira animação do país de narrativa completa com início, meio e fim.
Na televisão
A televisão foi inicialmente a maior janela das animações no país. Embora a TV, nos primeiros anos de seu surgimento, transmitisse por pouco tempo as animações, a maior amplitude de públicos que consumiam os programas conseguiu com que as emissoras colocassem filmes, desenhos e seriados animados em suas programações. TV Globo, Record e TV Manchete eram redes que utilizavam do sucesso e da fidelidade do público pelos desenhos.
A proximidade trazida pela exibição em rede nacional de animações dos mais diversos tipos, sejam elas brasileiras ou não, impulsionou uma estreita relação com a animação. Um sentimento nostálgico pela infância e adolescência rodeada de personagens animados ainda está presente nas gerações que cresceram assistindo aos desenhos.
Mesmo com certo declínio da televisão aberta ao longo dos anos, os telespectadores migraram para programas exclusivos de animações. Os canais fechados, como Disney, Cartoon Network e Nickelodeon, e as locadoras de vídeo cassete retribuíram a alta audiência dos telespectadores com uma alta criação de desenhos animados. A locação, a popularização dos downloads e dos DVDs piratas seguidos pelo surgimento do streaming exemplifica a rápida transformação do modo de consumir e produzir as animações nos últimos anos.
Entretanto, a essência dos desenhos animados permaneceu a mesma, encontrada em qualquer geração naquela mesma faixa etária e talvez em qualquer cultura, diz Lieban. “A gente no começo estava falando com um millennial, agora com a geração Z e assim vai mudando. Precisamos adaptar a nossa realidade atual, mas ainda acredito que algumas essências são universais.”
Esta transformação tecnológica e geracional popularizou um acesso à informação de uma maneira desordenada e descontrolada a toda sociedade, mas especialmente às crianças. Ainda que ocorra uma permanência dos sentimentos provocados pelas animações, o modo pelo qual está sendo transmitido deve ser considerado por quem produz. A adequação a cada faixa etária de exibição, a não subestimação e a presença de um conteúdo no qual ela vá se identificar são cuidados essenciais, já que a forma como uma criança lida com informação é muito diferente.
Os conteúdos inseridos nos desenhos animados, para além da distração momentânea da criança, constituem parte necessária de seu desenvolvimento. Instigar a busca por soluções a problemas da própria criança é uma das ferramentas que as animações de público infantil tentam auxiliar. Estar atento ao que interessa a elas e nesse sentido usar da emoção para a dramaturgia, atingindo a criança e o interesse dela, ressalta Andrés.
“Quem segue carreira é porque nunca parou de desenhar. Todo mundo começa a desenhar quando é criança e em um certo momento começa a desenvolver outros interesses e abandona o desenho. Quem trabalha com desenho é porque não abandonou esse lado.”
Andrés Lieban
Brincadeira de Criança
Animação 2D, 3D e Stop Motion são exemplos de técnicas existentes para dar vida ao inanimado. Com o desenvolvimento tecnológico, as animações atingiram um novo fluxo e distintas possibilidades de criação. Não havendo mais uma limitação brusca, as pessoas que antes não tinham apoio para produzir conseguiram investir em equipamentos com o barateamento dos itens. No contexto de desenvolvimento de técnica para criar animações esta inovação era algo inimaginável a anos atrás, evoluindo de maneira ágil, especialmente ao considerar a data de surgimento do formato.
“O stop motion é a realização da brincadeira da criança. Da mesma forma que uma criança brinca com carrinho e com boneca, você simula o movimento desses brinquedos na animação”
Fabio Yamaji
Para muitos artistas, grande parte do primeiro contato com a animação veio de oficinas, cursos e festivais que apareciam na mídia. Yamaji conta que começou na animação por conta de um curso de desenho animado “estilo Disney” anunciado no jornal, porém para ele era algo muito escasso na época.
É nesse contexto da animação nacional que surge o Anima Mundi, Festival Internacional de Animação do Brasil, que foi realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo. Sua primeira edição aconteceu em 1993, idealizada pelos animadores Aida Queiroz, Cesar Coelho, Léa Zagury e Marcos Magalhães O grupo se conheceu no evento do acordo brasileiro com o Canadá, decisão que facilitou parcerias para a produção de animações no Brasil.
Os visitantes do Anima Mundi conseguiam, além de assistir aos filmes, experimentar a fazer algumas animações, criando nos jovens o desejo de produzir seu próprio filme. A possibilidade de ter uma animação exibida num festival e de interagir com outros animadores passou a ser uma aspiração, estimulando o crescimento da animação e a união dos profissionais da área. Hoje, tem-se uma geração inteira que começou a animar no Anima Mundi, que mostrou seu filme lá e hoje são os donos dos estúdios brasileiros, ressalta Yamaji.
“Antes do Anima Mundi a produção brasileira de animação era muito heróica”
Fabio Yamaji
Além de abastecer o mercado brasiliero de filmes do mundo inteiro, o festival também estimulava a produção e divulgação nacional. O espírito de colaboração e troca de conhecimentos fazia com que inúmeros projetos surgissem em decorrência destes encontros. Um exemplo é a Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA), criada em 2003 dentro do Anima Mundi, com o objetivo de aproximar os profissionais de animação e desenvolver sua produção no país.
Funcionando por mais de 20 anos como uma janela de exibição dos filmes animados para o telespectador brasileiro, o festival foi interrompido no cenário de falta de patrocínios em 2019. O corte dos investimentos públicos para a cultura, a diminuição no número de editais e a interrupção dos incentivos da Petrobras cessaram a possibilidade de se debater a cultura da animação produzida no país, fechando a amostragem desses curtas, longas e séries.
Os incentivos que estimularam os animadores nos primeiros anos do século 21, motivados por terem um espaço para se exibirem, se tornaram a lembrança de um passado saudoso. Nos quatro anos do governo Bolsonaro (2019 – 2022)a cultura brasileira ficou em um terreno muito árido de modo geral, diz Andrés Lieban. Ele também ressalta o desgaste da gestão dos produtores culturais com os recursos dos festivais que muitas vezes chegavam após o evento.
“Esses anos de trevas na política deixou um buraco na animação brasileira. Não sei como vai ser daqui para frente porque os que estão agora fazendo séries e longas são os que cresceram no Anima Mundi, praticamente todos.”
Fabio Yamaji
Novas gerações
Criou-se uma geração que não teve a oportunidade de mergulhar na experimentação da animação. Apesar de frequentarem cursos profissionalizantes e faculdades, os novos artistas se tornaram uma mão de obra para séries e longas de estúdios, se distanciando da produção autoral.
Para Yamaji, o distanciamento preocupa pela qualidade entregue nas produções: “Há uma distinção entre o longa-metragem autoral e o típico de estúdios como filmes da Disney, da Pixar, da Warner. É assim que você consegue ver quem são os autores, aqueles que possuem seu próprio universo, sua estética como o Alê Abreu, no cenário brasileiro, e o Miyazaki.”
Ao tratar de pequenos artistas, esses, infelizmente, não possuem amparo financeiro para animarem aquilo de mais genuíno a suas aspirações. Eles migram para projetos transmitidos apenas em canais fechados ou streamings. Muitas das animações se encontram extremamente engessadas e limitadas, até por conta das dificuldades impostas pelos canais.
“Na parte comercial tanto do lado do artista quanto do canal falta uma coragem para fazer algo original. Essa coragem é retraída pela necessidade de vender, de fazer sucesso para ter alguma forma de retorno.”
Fábio Yamaji
Entretanto, a cultura, se não oferecida para a criança, o mercado por si só não consegue educar. Animações são um estilo caro de produção e, sem investimento, a nova geração fica sem esse conteúdo.
Ainda que ocorra transformações imensas na disseminação das produções animadas, a dependência estreita da comunidade artística, especialmente dos pequenos produtores, na divulgação publicitária é a marca da necessidade de um retorno comercial. O formato massificado das redes altera a experiência de consumir as produções animadas, adaptando-se a um ritmo acelerado dos últimos anos. As produções artísticas tentam lentamente atingir sua força passada se escorando nas brechas do reaquecimento cultural.