Por Malu Vieira (marialuizavieiragoncalves@usp.br)
O cinema é reconhecido por trazer histórias e vivências reais ou fictícias para as telas. Em um universo onde o primeiro contato do ser humano é com aquela que o gestou, é indiscutível que a sétima arte abordaria o tema da maternidade. Que Horas Ela Volta? (2015), A Filha Perdida (The Lost Daughter, 2021), Lady Bird – A Hora de Voar (Lady Bird, 2018), Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once, 2022) e Como Nossos Pais (2017) são apenas alguns exemplos de obras que mostram um pouco do mundo maternal.
No entanto, apesar de haver um vasto catálogo de filmes que abordam o tema da maternidade, nem sempre a representação desse mundo é fiel. Estereotipadas, as mães no cinema são abordadas de forma ampla. É possível vê-las idealizadas, protetoras, controladoras, amigas, solteiras, adolescentes, ausentes e de outras diversas formas retratadas pelo universo cinematográfico.
Idealizada: o arquétipo da mãe devotada
Historicamente, o cinema idealizou a figura materna, retratando-a como um símbolo de pureza, sacrifício e amor incondicional. Nos anos dourados de Hollywood, a mãe devotada, que garantia a estabilidade da família, era muitas vezes um pilar central nas narrativas. Um exemplo clássico é o filme Alma em Suplício (Mildred Pierce, 1945), em que Joan Crawford interpreta Mildred, uma mãe solteira que sacrifica tudo para dar uma vida melhor à sua filha. A personagem exemplifica a ideia da mãe que se anula em favor do bem-estar dos filhos, um conceito profundamente enraizado no imaginário popular daquela época.
Essa representação da mãe como uma figura quase santa se estende a outros gêneros cinematográficos. No musical A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), Maria (Julie Andrews) assume uma posição quase maternal em relação às crianças Von Trapp, sendo amorosa e protetora. Retratos como esse constroem a ideia de que a maternidade é unilateral, o que não acontece na vida real.

Adriana Falqueto Lemos, professora do Instituto Federal de Educação do Sul de Minas, é escritora do livro Representações maternas no Cinema (EDIFES, 2019) e fala sobre a idealização da maternidade. Ao Cinéfilos, a professora comenta sobre a falta de representatividade em algumas vertentes do cinema, que ainda reproduzem a mesma estética. “Não é surpresa que a gente não tenha muitos dados nesse respeito. A gente tem a figura da boa mãe, a mãe de um filho, que se sacrifica. Essa figura é mais na linha melodramática, mas a gente também tem o cinema que problematiza isso: os filmes de Almodóvar, por exemplo.”
Subversiva: mães imperfeitas e complexas
Ao longo dos anos, com os avanços feministas, o papel da representação da mulher de casa também foi subvertido. O filme ganhador do Oscar de Melhor Filme de 2022, Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo, é um belo exemplo da representação real da maternidade e do conflito mãe e filha. Evelyn (Michelle Yeoh) é uma mãe real. A personagem se sente perdida em sua própria história e desconta em sua filha, Joy (Stephanie Hsu), sua própria frustração. O longa faz uma abordagem real sobre o ato de ser mãe e as dificuldades de se doar o tempo inteiro em prol de sua família.
Ao viajar por diferentes dimensões, Evelyn encontra cenários onde ela era mais do que apenas uma dona de casa, o que a faz refletir sobre diferentes jeitos de confrontar a vida. Esse despertar também ajuda sua relação com Joy. Ao se libertar das amarras sociais, sua maneira de lidar com os conflitos familiares muda.
Assim como em Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo, a animação Red: Crescer é uma Fera (Turning Red, 2022), também retrata relações conflituosas entre Mei Lee e sua mãe, Ming Lee. Criada numa família chinesa tradicional imigrante no Canadá, Mei é forçada a seguir os padrões de perfeição impostos por sua família. Ao entrar na pré-adolescência, a maldição de sua família se inicia. Todas as emoções liberadas fazem com que ela se transforme em uma fera — literalmente. A fim de lutar contra seus sentimentos, o desenrolar da narrativa mostra as diversas mulheres da família sendo obrigadas a esconder seus “eus” verdadeiros, representados pela fera.
Em ambos os filmes, é possível ver a fragilidade das relações entre mães e filhas devido à exigência de controle de si e das filhas mulheres pelas instâncias patriarcais, em que são colocadas como reprodutoras. A sétima arte ajuda o telespectador a se identificar com cenários majoritariamente fictícios, mas que de alguma maneira se relacionam com suas experiências pessoais.
Diversidade na maternidade cinematográfica contemporânea
O cinema nacional também possui um vasto repertório de filmes críticos ao padrão imposto às mulheres. Que horas ela volta? e Como nossos pais são exemplos de cinematografias que representam diferentes aspectos da maternidade. Afinal, o que caracteriza uma mãe?
No longa dirigido por Anna Muylaert, a pernambucana Val (Regina Casé) se muda para São Paulo com o intuito de proporcionar melhores condições de vida para a filha, Jéssica (Camila Márdila). Alguns anos depois, Jéssica telefona e diz que irá se mudar para a capital para estudar e entrar na prestigiada Faculdade de Arquitetura (FAU) da USP. O filme aborda a relação de Val com Fabinho (Michel Joelsas), filho de sua patroa, e como as relações familiares sofrem reviravoltas quando Jéssica chega. O longa reflete diferentes maneiras de exercer a maternidade ao mostrar Val sendo como a mãe de Fabinho, enquanto Bárbara (Karine Teles), a patroa, exerce uma relação de poder e cobrança sobre o menino.
Já o filme Como nossos pais, dirigido por Laís Bodanzky, explora a maternidade de uma forma intensa e realista, trazendo à tona os conflitos internos e externos enfrentados pela protagonista, Rosa (Maria Ribeiro). A história contém temas como o impacto das escolhas de vida, os desafios da criação dos filhos e as pressões sociais e familiares que pesam sobre as mulheres.

O cinema internacional também propõe diversas abordagens da mãe contemporânea. Estrelado por Olivia Colman, A Filha Perdida acompanha Leda, uma professora universitária que, em viagem para a Grécia, conhece Nina (Dakota Johnson), uma mãe jovem que está enfrentando os problemas da maternidade real. Leda se enxerga em Nina, e a trama se desenvolve ao mostrar o passado de Leda e ao compará-lo com a situação presente de Nina.
Maternidade exagerada nos filmes de terror
Os filmes de terror são conhecidos por retratar tudo de forma exagerada, seja por grandes impactos visuais, pela trilha sonora ou pela história contada de maneira tensa. O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968), dirigido por Roman Polanski, explora a maternidade através da manipulação do corpo feminino. Neste filme, Rosemary, a protagonista, fica grávida de um filho que, gradualmente, se revela uma criatura demoníaca. A gravidez, que deveria ser um momento de alegria e celebração, se torna um pesadelo, em que o corpo da mulher é invadido por forças externas — neste caso, uma seita satânica. No longa, a maternidade é transformada em um espaço de opressão e medo, um reflexo de um profundo temor da perda de autonomia sobre o próprio corpo.
“Parecia que eu estava no Bebê de Rosemary, porque eu estava perdendo peso, não conseguia comer nada, me sentia muito enjoada e me sentia feia quando me olhava no espelho”, conta Adriana Lemos sobre a sua gravidez. “Então, cadê aquela vitalidade, aquela beleza que se espera da mãe e da mulher na maternidade? Cadê a propaganda?”
A professora também comenta que os estereótipos de maternidade representados em diferentes filmes e o que é abordado no cinema de terror foi o que a incentivou a escrever o livro acerca do tema. “Quando eu fui escrever esse artigo, pensei nesses filmes de terror que falavam justamente do conflito da mulher num processo de maternidade, do reconhecimento de que as coisas talvez não são como a propaganda”, afirma.
A maternidade também pode ser retratada como uma fonte de angústia psicológica, por meio de personagens femininas que enfrentam uma luta interna entre os instintos maternos e os sentimentos de medo, dúvida ou até repulsa em relação aos filhos. Isso pode ser especialmente perturbador, porque, culturalmente, a figura da mãe é muitas vezes idealizada como um símbolo de cuidado e afeto incondicional, o que não é o caso em diversos longas de horror.
O terror Hereditário (Hereditary, 2018), de Ari Aster, explora a ideia de que a maternidade pode ser uma fonte de trauma e sofrimento. Annie (Toni Collette) vive uma relação difícil com sua falecida mãe e seus filhos, e a herança emocional dessa relação conturbada vai se tornando cada vez mais evidente e aterradora ao longo da narrativa. A maternidade nesse filme é carregada de culpa, medo e desespero, escancarando a complexidade e os potenciais demônios interiores que podem acompanhar a experiência de ser mãe.

Ver para conseguir viver
A abordagem da maternidade na sétima arte tem evoluído ao longo do tempo, refletindo e moldando as percepções culturais sobre o papel das mães na sociedade. Das devotadas às mais complexas e imperfeitas, os filmes continuam a explorar as muitas facetas dessa temática. Essas representações não apenas ajudam a entender o que significa ser mãe em diferentes contextos históricos e culturais, mas também destacam os desafios e as pressões enfrentadas por essas mulheres, tanto na tela quanto fora dela.
Ao retratar a maternidade sob diferentes luzes, o cinema oferece uma plataforma poderosa para discutir a diversidade de experiências. Obras que abordam o tema com profundidade contribuem para expandir o debate sobre o papel da mulher na sociedade e, ao mesmo tempo, desafiam estereótipos enraizados sobre o que significa ser mãe. A evolução dessas narrativas mostra que, assim como a sociedade, a abordagem dessa temática no audiovisual está em constante transformação.