É comum conhecer alguém que diz sentir falta do período da ditadura militar no Brasil ou até mesmo ser o próprio saudosista. Essa informação não surpreende em um país cuja frágil democracia elegeu um presidente que exalta torturadores em pleno Congresso Nacional. Porém, é inocência pensar que a relativização e as apologias a tais sombrias décadas da história brasileira começaram nos últimos anos.
Desde a queda dos ditadores, bases jurídicas, mentais e públicas criaram cenários nos quais parte considerável da população não dimensiona o tamanho dos horrores cometidos e até crê em afirmações falsas. De forma diferente, em outros países da América Latina que também passaram por ditaduras no século XX — em especial Argentina, Chile e Uruguai —, nossos vizinhos enfrentam seus passados olho no olho.
Para começar esta reportagem, é necessário desconstruir algumas falas comuns de serem escutadas no dia a dia. Alguns dizem que sentem falta da ditadura militar, pois naquela época “não havia corrupção”. No entanto, logicamente, em um Estado tomado pela censura e aparelhado de A à Z, investigações limpas e divulgação de escândalos eram dificultadas e valia a máxima do “se ninguém sabe, não aconteceu”. Entre os casos descobertos, estão os famosos “Escândalo Lutfalla” e “Caso Delfim”.
O primeiro ocorreu no governo Geisel e envolveu o empréstimo de dinheiro público para uma empresa em situação de falência — que era propriedade do sogro de Paulo Maluf, político ligado ao regime. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) foi contrário à transação, dado o risco, mas foi obrigado a concluí-la por “ordens superiores”. O segundo foi no governo Figueiredo. A quebra do grupo Coroa-Brastel fez surgir denúncias de que os ministros Delfim Neto (Ministério do Planejamento) e Ernani Galveas (Ministério da Fazenda) teriam favorecido o grupo, desviando empréstimos concedidos pela Caixa Econômica Federal. As relações entre a Delfin e o BNH envolveram uma negociata com terrenos superfaturados, no qual o banco quitava uma dívida da empresa, determinando um preço cerca de seis vezes superior ao do mercado para os terrenos entregues.
Outra conversa frequente é a de que “a ditadura só pegou bandido”. Toda essa concepção é violenta e exprime profundamente a cultura de desvalorização da vida incrustada em um país que viveu quase 400 anos sob um regime escravista. Isto dito, cabe ressaltar que os agentes da ditadura tinham liberdade para prender qualquer um que discordasse de seus ideais. E graças ao AI-5, não havia chance de Habeas Corpus. Nos porões do governo brasileiro milhares foram torturados e mortos. Entre eles, Carlos Alexandre Azevedo, preso com os seus pais em 1974, com apenas 1 ano e 8 meses. Segundo a família, Carlos foi torturado no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, trauma que perdurou durante toda sua vida. Ainda jovem, foi diagnosticado com depressão e fobia social, até que em 2013 suicidou-se.
Também é rotineiro ouvir que “na época dos militares a economia era melhor”. Falta saber para quem e às custas de quem. Parte do plano de crescimento que resultou no tão falado “Milagre Econômico” envolveu conter salários e mudar a fórmula que previa o reajuste da remuneração pela inflação. O arrocho salarial produziu perdas reais para os trabalhadores e deixou os pobres mais pobres. A desigualdade social, medida pelo Índice de Gini, bateu recordes: antes do regime, estava em 0,54 (a conta vai de 0 a 1, quanto mais próximo do 1, mais desigual). Em 1977, pulou para 0,63. Esses são apenas alguns dos mitos perpetuados sobre nossa história. Agora, cabe tentar entender porque ainda os propagamos.
Impunidade
Em 1979, a Lei de Anistia foi enfim aprovada no Brasil para crimes políticos e eleitorais. O problema é que ela não serviu somente para os presos políticos, exilados e todos que tiveram seus direitos políticos suspensos, mas também para os militares. Dessa forma, muitos agentes dos Anos de Chumbo que cometeram verdadeiros crimes contra a humanidade nada tiveram que pagar à justiça. “O Brasil é um dos poucos países da América Latina que não conseguiu enfrentar juridicamente os crimes contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura dos anos 60/70”, afirma Márcio Seligmann, professor de Teoria Literária da Unicamp e pesquisador de, entre outros assuntos, história do testemunho e memória da violência das ditaduras na América Latina.
“Esse bloqueio jurídico é sustentado de modo político, por uma política da impunidade e do esquecimento, pois não tem base jurídica (crimes desse calibre contra os direitos humanos são imprescritíveis e não passíveis de anistia). Esse é um dos motivos desse caminho singular da memória da ditadura brasileira”, completa Márcio. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro e declarou que a Lei da Anistia impedia investigações e punições contra graves violações a essas garantias. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou e negou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por uma revisão na legislação.
Em 2008, o Ministério Público Federal de SP ajuizou a primeira ação civil-pública contra a União e dois militares acusados de assassinatos e torturas, o coronel Brilhante Ustra e o coronel Audir Maciel. No mesmo ano, Ustra foi apontado pela justiça como culpado por crimes de tortura e, em 2012, condenado a pagar indenizações por danos morais. O torturador nunca foi preso, faleceu aos 83 anos em decorrência de problemas de saúde e suas filhas recebem até hoje do Estado uma pensão de mais de 15 mil reais cada. Estima-se que ele é responsável por 60 mortes e 500 vítimas de tortura.
A exemplo de tamanha negligência processual, a primeira vez que a justiça condenou penalmente um agente da ditadura pela sua participação na repressão foi em 2021. O delegado aposentado do DOPS de São Paulo Carlos Alberto Augusto foi condenado a 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro e cárcere privado de Edgar de Aquino Duarte, desaparecido desde 1971.
Em outros países da América Latina, essa história foi diferente. “Nossos vizinhos enfrentaram juridicamente os crimes da ditadura. Isso produziu uma cultura crítica da memória calcada nos direitos humanos”, explica Márcio. Na Argentina, cerca de 200 agentes do regime militar receberam condenações, incluindo todos os ditadores. No Chile, que viu o fim da ditadura sanguinária de Augusto Pinochet em 1990, a Suprema Corte decidiu, em 1998, que a Lei de Anistia não poderia ser aplicada aos casos de violações de direitos humanos. Pinochet foi preso no mesmo ano. Durante seu governo, pelo menos 40 mil pessoas foram executadas, desaparecidas e torturadas pelo Estado por motivos políticos, revelam dados do relatório da Comissão Valech.
De acordo com Fabio Luis Ferreira Nobrega Franco, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor da tese “Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil”, a tradição política do Brasil difere da de Argentina e Chile. “Foi criada uma pactuação das elites”, afirma. Segundo ele, não houve responsabilização e eventual punição dos responsáveis pelos atos de violação de direitos humanos cometidos na ditadura. “Ao invés disso, o que se teve foi uma pactuação desde cima, contando largamente com apoio de setores conservadores da sociedade civil, da grande imprensa e etc.”, defende.
Cara a cara com o passado
A Argentina possui 36 lugares identificados como “sítios de memória”, ligados à última ditadura cívico-militar. A maioria são ex-centros clandestinos de detenção que foram transformados em espaços de cultura. Os visitantes podem até mesmo observar com os próprios olhos os centros de tortura. O modo de encarar face a face esses horrores do passado auxilia para que eles não caiam no esquecimento ou tornem a se repetir. Até hoje é forte o movimento no país que clama pelos desaparecidos durante o regime. A famosa organização Avós da Praça de Maio luta para encontrar os netos perdidos e já conseguiu identificar mais de 100 nomes.
O Chile conta com um dos mais impressionantes museus de memória do mundo. Trata-se do Museu da Memória e Direitos Humanos. Lá estão mais de 140 mil documentos, 39 mil fotos, centenas de depoimentos em vídeo e objetos dos desaparecidos durante a ditadura militar chilena. Quem visita pode pesquisar desde as sentenças judiciais até os lugares de detenção e as vítimas. Em 2019, multidões foram às ruas pedindo, entre outras pautas, uma nova Constituição ao país – posto que a vigente era dos tempos de Pinochet. Um plebiscito indicou que 78% da população chilena desejava a nova Carta Magna e uma Convenção Constitucional está elaborando o texto.
No Uruguai, o Centro Cultural e Museu Memória fica na capital e tem uma exposição permanente com objetos, fotografias e documentos. As salas contam todo o processo ditatorial — desde sua instauração até a redemocratização — passando pela resistência, pela repressão e pelas histórias que até hoje não foram concluídas. No país, em todo dia 20 de maio, desde 1996, acontece a Marcha do Silêncio, que reúne milhares de pessoas nas ruas e luta para não deixar que as atrocidades cometidas pelo Estado militar sejam esquecidas, além de exigir esclarecimentos sobre os desaparecidos.
“A vivência dessa experiência intelectual, política e moral que é o contato com as memórias do período de exceção pode permitir imaginários políticos mais amplos, expectativas de transformação mais largas — o que se entende como futuro”, diz Nashla Dahas, professora colaboradora da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e revisora da Editora Raiz Educação (RJ). Ela ainda é coeditora do portal Memórias da Ditadura, site que, de acordo com Nashla, “é um espaço virtual de produção, difusão e compartilhamento de conhecimento sobre a história e a memória de ditaduras e regimes autoritários”.
Aqui no Brasil, são poucos os espaços de lembrança da repressão dos Anos de Chumbo. Talvez o mais famoso seja o Memorial da Resistência de São Paulo, que é sediado no lugar onde funcionou entre 1940 e 1983 o DOPS de São Paulo, uma das polícias consideradas mais truculentas do país. Em contraponto a locais como esse, que são contados nos dedos, as homenagens aos ditadores em nomes de ruas, avenidas e edificações continuam numerosas.
A Ponte Rio-Niterói, que liga as duas cidades, é popularmente conhecida assim, mas possui outro nome oficial: Ponte Presidente Costa e Silva. Segundo dados do portal Agência Pública, são aproximadamente 160 km homenageando os que resistiram contra mais de 2000 km de vias que fazem referências aos algozes. Na Marginal Tietê, em São Paulo, a Avenida Castelo Branco fica a menos de 500 metros da rua Vladimir Herzog, que homenageia o jornalista torturado e morto pela ditadura. Esforços estão sendo realizados por setores sociais para que esse cenário mude. O “Minhocão”, na capital paulista, chamava-se Elevado Costa e Silva e desde 2016 ganhou o nome de Elevado Presidente João Goulart, político derrubado pelo golpe de 1964. Entretanto, há um longo caminho ainda a percorrer.
O professor Márcio é um dos agentes na luta pelo resgate dessas memórias. Ele conta que é um dos curadores da recentemente inaugurada exposição permanente no Centro Universitário Maria Antônia “MemoriAntonia: por uma memória ativa a serviço dos direitos humanos”. “A ideia da estrutura é a de somar artistas visuais, cineastas e fotógrafos para ajudar a compor essa inscrição crítica dos tempos de chumbo”, explica.
A Comissão Nacional da Verdade
Ainda pensando em esforços para passar a limpo as atrocidades do regime militar, provavelmente o mais importante dispositivo no Brasil foi a Comissão Nacional da Verdade, finalizada em 2014. Um colegiado instituído pelo governo federal para investigar as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos ou pessoas a seu serviço com apoio ou interesse no Estado entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Os trabalhos começaram em 2012, com Dilma Rousseff no poder, em uma cerimônia com a presença de todos os ex-Presidentes da República desde a redemocratização brasileira.
O relatório final da comissão foi entregue em 2014. Esse concluiu que a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres resultou de uma política estatal, de alcance generealizado contra a população civil, caracterizando-se como crimes contra a humanidade. A CNV recomendou medidas e políticas públicas para prevenir violações de direitos humanos, assegurar a não repetição desses atentados e promover o fortalecimento da democracia.
Necropolítica em ação
O sociólogo Achille Mbembe conceituou o termo “necropolítica”, que baseia-se na concepção de que alguns governos realizam uma gestão de condições mortíferas, que tem por finalidade que certas pessoas morram ou vivam em condições mínimas. Essa administração também vale para o pós-morte, pois se tem a ideia de que algumas vidas valem menos do que outras. Além da produção de corpos sem nome, sem identidade. Dessa forma, fica clara a relação com a Ditadura Militar brasileira.
A CNV reconhece 434 mortes e desaparecimentos políticos entre 1964 e 1988, mas Fabio acredita que esse número seja muito maior, pois um Estado mergulhado na necrogovernamentalidade faz da morte uma parte da burocracia. “O Brasil conseguiu fazer com que o desaparecimento se tornasse política corriqueira, administrativa, parte dos processos e dos fluxos normais de circulação e de gestão dos mortos”, esclarece e alerta que essa leitura minimiza o poder desaparecedor do regime.
Para ele, é um equívoco comparar os números do Brasil e de Argentina e Chile, por exemplo. O doutor pela USP explica que “essa informação parte do pressuposto de que o desaparecimento se reduz ao desaparecimento forçado”. Além disso, critica: “como se a contagem dos desaparecidos, assim como dos mortos, dependesse ou estivesse relacionada apenas do critério de engajamento político destas pessoas na oposição frontal à ditadura, como levou em consideração a Comissão Nacional da Verdade”.
Em suma, com base nas proposições de Fabio, esses desaparecimentos se estendem para além da ditadura por meio do apagamento sistemático de dados e informações sobre o que aconteceu. Assim, esse poder também atinge o nível simbólico da possibilidade de produção de uma memória coletiva a respeito desses corpos.
Democracia na corda bamba
Apesar dos avanços citados anteriormente, o cenário foi muito agravado nos últimos anos, especialmente com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. Militar, antes de ser o ocupante do Planalto foi deputado por duas décadas e nunca escondeu seu apreço pela ditadura. Proferiu exaltações em pleno Congresso ao torturador Brilhante Ustra em 2016 no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, que foi torturada por Ustra no início dos anos 1970. Ainda parlamentar, não sofreu nenhuma consequência legal. O político já havia, inclusive, dito que “o erro da ditadura havia sido torturar em vez de matar”.
Diferentemente, a Argentina, em 2020, avaliou criar uma lei que penalize quem negar os crimes da ditadura militar. No Chile, debatem um projeto de lei que pune com multas e até três anos de prisão quem negar os crimes cometidos pela ditadura de Pinochet.
Por aqui, Bolsonaro foi eleito pelos brasileiros com mais de 55% dos votos no segundo turno em 2018 e continuou demonstrando sua afeição pelo regime militar. Desde sua posse, o governo federal vem se manifestando publicamente a favor do golpe de 1964. Em 2019, sua equipe chegou, até mesmo, a mandar um telegrama à ONU negando que houve ditadura. Em manifestações de bolsonaristas, muitas acompanhadas presencialmente pelo próprio presidente, apoiadores clamam por uma intervenção militar. Ainda que desgastados e somente com 21% das intenções de voto para as próximas eleições, Bolsonaro e seus admiradores seguem estraçalhando ainda mais uma democracia em construção.
O negacionismo sempre existiu em determinados grupos, mas está fortalecido com a legitimação por autoridades importantes. Além disso, as redes sociais ajudam a propagar esses discursos. “Os neofascistas de plantão descobriram e se apropriaram com competência desses novos meios”, aponta Márcio. Ele ainda discorre que “uma das características fundamentais dos movimentos fascistas é a produção da ‘massa’ (o que chamamos hoje de modo irônico, de ‘gado’). As redes facilitam essa construção de massas que são facilmente manipuladas (em suas genuínas demandas por mudança) por políticos com tendência paternalista/fascista”.
Ainda há tempo?
“Temos que lutar pela inscrição da história da violência no Brasil, isso inclui, claro, a história da nossa colonialidade, ou seja, da violência colonial, com a escravização e o racismo, que até hoje marca profundamente a nossa sociedade”
Márcio Seligmann, professor da Unicamp
Fica, portanto, a pergunta: ainda é possível virar esse jogo e lidar com seriedade com esse passado tão recente e sombrio do Brasil? Para Nashla, “os efeitos de nosso ‘atraso’ nesse processo já estão em vigor e não podem ser revertidos; estão fermentando”. “As iniciativas para um ‘nunca mais’ (lembrar para que não se repita, lembrar para que nunca mais aconteça) não funcionariam, pois aquilo que supõe-se que não deveria mais acontecer está em marcha”, completa a professora. Fabio, por sua vez, propõe que o mais importante nesse momento seria pensar na atual forma de autoritarismo do nosso país, realizando uma análise crítica.
Na visão de Márcio, nunca é tarde para se começar. “Na Alemanha foi preciso mais de 30 anos para que a população alemã realmente construísse uma consciência crítica com relação ao período nazista. No governo Adenauer, nos anos 1960, muitos políticos haviam servido ao nazismo”, lembra. Ele defende que “temos que lutar pela inscrição da história da violência no Brasil, isso inclui, claro, a história da nossa colonialidade, ou seja, da violência colonial, com a escravização e o racismo, que até hoje marca profundamente a nossa sociedade”. São muitas as vias para o fortalecimento da consciência dos horrores cometidos pela ditadura. Há que se encarar de frente as feridas deixadas, conhecer a verdade e frear impulsos de pessoas que querem retomar aqueles tempos antidemocráticos.
Parabéns , só dessa forma que vamos poder refletir o passado e ajudar o melhor para o futuro