Jornalismo Júnior

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‘O Segredo de Brokeback Mountain’ e seu pioneirismo nas narrativas LGBTQIA+

O romance de Jack Twist e Ennis Del Mar abriu caminho para os romances gays na grande indústria do cinema apesar de suas controvérsias e conservadorismos
Por Aline Fiori (alinefiori05@usp.br)

O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005) agradou aos olhos da indústria cinematográfica e levou visibilidade ao público por suas premiações. O longa, baseado no conto Brokeback Mountain, de Annie Proulx, publicado em 1997 na revista The New Yorker, ganhou vida nas mãos do diretor Ang Lee conhecido por Banquete de Casamento (Xi yan, 1993) e O Tigre e o Dragão (Wo hu cang long, 2000). O filme conta a história de amor entre os caubóis Jack Twist (Jake Gyllenhaal) e Ennis Del Mar (Heath Ledger) que se conhecem durante o verão de 1963 e desenvolvem um relacionamento longe da sociedade. 

O New Queer Cinema, já era responsável por narrativas LGBTQIA+ leves nos anos 80 e 90 que não ignoravam a homofobia, mas não faziam dela o centro da narrativa. O cinema queer abriu portas para que nos anos 2000 aumentasse a representação desses casais na indústria do cinema. Nas grandes telas de cinema e televisão aberta foi onde desencadeou maior repercussão e visibilidade como no caso de O Segredo de Brokeback Mountain.

O casal se conhece em Signal, Wyoming — estado menos populoso dos Estados Unidos e conhecido popularmente como “Estado Caubói” [Imagem: Reprodução/IMDb]

O romance de Jack e Ennis

O trabalho dos protagonistas era levar ovelhas para a montanha Brokeback e acampar no local para tomar conta do rebanho durante todo o verão. Apesar das poucas palavras trocadas entre os personagens nas primeiras cenas, tudo muda quando depois de uma noite de bebidas e conversas, a fogueira de Ennis se apaga e ele se vê obrigado a aceitar o convite de Jack para entrar na sua barraca, no decorrer dessa noite os jovens têm uma relação sexual.

No dia seguinte, Ennis acorda em negação com o que havia acontecido, mas os rapazes continuam com essa relação até o fim do trabalho. Quando se separam, se casam com as mulheres que estavam prometidos e têm filhos. Somente depois de quatro anos eles se reencontram e voltam à montanha, onde Ennis decide que seu relacionamento seria apenas encontros escondidos de vez em quando.

Após a cena de remorso de Ennis, a transição para o casamento é ancorada pela oração “Pai Nosso” [Imagem: Reprodução/IMDb]

O relacionamento dura cerca de 20 anos e mesmo com o divórcio dos protagonistas e a insistência de Jack para que fossem morar juntos e serem felizes em uma fazenda, Ennis nunca deixou que seu relacionamento saísse da montanha ou da ocultação. Porém, Jack não perdeu a esperança de ter uma vida com seu companheiro até o último encontro do casal.

O último encontro acontece devido a uma carta enviada de Ennis para Jack que retorna com um carimbo de falecido. Ennis toma a decisão de falar com a família de Jack e se encontra com a revelação de que, antes de falecer, Jack estava pronto para ir morar com outro homem em uma fazenda. O filme deixa em aberto a morte do protagonista, com a dúvida de o motivo ter sido ou não sua homossexualidade.

Tudo o que sobra da paixão arrebatadora são duas camisas, uma de Ennis e outra de Jack, penduradas dentro do armário e um cartão postal com a foto de Brokeback [Imagem: Reprodução/IMDb]

Construção e disrupção de Brokeback Mountain

O slogan do filme “O amor é uma força da natureza” faz alusão ao surgimento do casal, que na montanha, cercados de natureza e longe da sociedade, nasce um amor natural sem uma premeditação para os personagens ou espectadores. Bruno Carmelo — crítico de cinema e professor de Cinema Queer no Cinesesc — conta que muitas pessoas descobriram apenas na sala de cinema que era um romance homossexual com o decorrer da narrativa e envolvimento dos personagens. 

O filme rompe com o que a ensaísta Adrienne Rich chama de “heterossexualidade compulsória” que acontece no longa pela assimilação do gênero western, que apresenta o estereótipo de  caubóis másculos e héteros. Adrienne explica que a heteronormatividade é nada mais do que a heterossexualidade que é imposta em toda a sociedade, que rege questões como o gênero e o sexo e dita o que é “natural”, desenvolvendo tabus em relação à homossexualidade. 

A performatividade — estudada pela pesquisadora Judith Butler — também é materializada por esse fenômeno. Butler analisa em sua pesquisa que quando um indivíduo nasce, já começa a perfomance de atos repetitivos e inconscientes de acordo com a norma heterossexual. Alguns exemplos de performatividade estão na aparência física, comportamento e roupas.

Os personagens que estão inseridos em um estética western, apresentam um gênero hipermasculinizado [Imagem: Reprodução/IMDb]

O romance de Jack e Ennis ganha destaque justamente por conta da ironia que criam ao redor da heteronormatividade com a performatividade subversiva, estudada por Judith como uma continuidade da norma heterossexual, mas que ao mesmo tempo vai contra a ordem social. O Segredo de Brokeback Mountain utiliza a performatividade subversiva ao trazer protagonistas nascidos do sexo masculino, do gênero masculinos, com vestimenta, aparência física e comportamento associados a norma heterossexual, mas gays. Uma quebra da heteronormatividade. 

Além dos personagens, os atores Jake e Heath representam homens de sucesso padrão hollywoodiano. Eles têm corpos masculinos alinhados com os padrões estéticos da sociedade da época, junto ao modelo de masculinidade ideal. Bruno Carmelo afirma que “O Segredo de Brokeback Mountain é muito aceito por seus dois ótimos atores, mas que é acreditado que são atores ainda melhores por terem feito essa coisa tão absurda de parecer gay ou lésbica no cinema”. Ele acrescenta que isso fortalece que casais homoafetivos não eram tratados como naturais.

Jake, ainda que ótimo ator, possui um padrão de beleza comum nas telas de Hollywood [Imagem: Reprodução/IMDb]

Os papéis masculinos do filme a todo momento se afirmam como de fato másculos e heteronormativos. Principalmente Ennis Del Mar, que não admite ser homossexual durante todo o filme e apresenta um comportamento culturalmente masculino como não demonstrar sentimentos e quando demonstra, usa da violência. Na primeira vez ao descer da montanha, ele dá um soco em Jack; quando confrontado sobre sua sexualidade por sua ex-esposa Alma (Michelle Williams), ele compra uma briga na rua. Porém, na maior parte do filme ele simplesmente não fala, muito menos de suas emoções.

O maior exemplo de masculinidade dos personagens seria justamente eles não assumirem sua verdadeira sexualidade [Imagem: Reprodução/IMDb]

O impacto gerado pelo filme

Após a compra dos direitos de adaptação do conto publicado, o roteiro, feito por Larry McMurtry e Diana Ossana, já estava pronto há oito anos antes da produção. A história era conhecida nos bastidores de Hollywood como “o melhor roteiro impossível de ser filmado”, já que ninguém queria se associar com a história de personagens gays. O próprio Jake Gyllenhaal, que interpretou Jack Twist, recusou a primeira proposta de fazer o filme aos 16 anos. 

Flávia Rosa, formada em história na UFU, embasou seu TCC na construção da mensagem do filme, e comenta que O Segredo de Brokeback Mountain teve que esperar o momento certo para ser feito, com uma polêmica que chamasse atenção, mas que não desagradasse o público. Ela adiciona que foi um importante primeiro passo para a representatividade de LGBTQIA+ no cinema, mas o fez com timidez.

O Segredo de Brokeback Mountain gerou grande polêmica e repercussão na época tanto em Hollywood, na mídia e para o público, mas atraiu muitas pessoas para o cinema, faturando US$178 milhões na bilheteria mundial. Em entrevista  à revista Variety, Ang Lee e o produtor James Schamus afirmaram que a produção do filme, incluindo o marketing, foi feita com somente 14 milhões de dólares. O longa estava marcado para se tornar uma produção alternativa, tanto pelo orçamento quanto pela temática, mas foi uma surpresa para os realizadores quando o filme fez tamanho sucesso.

Diretor Ang Lee durante as filmagens de Brokeback Mountain [Imagem: Reprodução/IMDb]

Instituições católicas foram as primeiras a se manifestar sobre a polêmica do filme. A Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos para Cinema e Transmissão, conhecida por classificar filmes, passou o longa de “apenas para adultos” para “ofensivo moralmente” depois de receber reclamações de grupos católicos. O jornal The Catholic Register, um periódico católico do Canadá, ilustrou o filme como “um conto de consequências infinitamente tristes da obsessão sexual, sobre a destruição que a paixão desordenada pode causar em pecadores e inocentes”. 

As críticas religiosas, ao julgarem a homossexualidade, trouxeram um olhar que a sugeriu como uma prática que precisava da igreja para se desvincular. O professor de Teoria e Literatura Queer na Universidade de Toronto, Michael Cobb, explica que por isso o filme ganhou um sentido de que os cristãos ainda têm muito a fazer.

A produção também gerou piadas em relação à junção entre homossexualidade e caubóis. O filme foi parodiado com outras produções e teve seus pôsteres alterados para efeitos cômicos. O programa David Letterman’s Show, veiculou uma lista chamada “Top 10 sinais que você é um caubói gay”. Todas essas alusões também incentivaram mais pessoas a ver o filme.

A polêmica gerada na produção cinematográfica atraiu atenção na sociedade para transformações, mesmo que o filme ainda apresentasse visões conservadoras, acrescenta Flávia. Afinal, Jack é retratado como transgressor das regras sociais e seu destino no filme é a morte, enquanto Ennis prefere esconder sua sexualidade. O crítico Bruno, analisa que a indústria do Oscar é cis-hétero, conservadora e que valoriza essas representações, desde que mostre que eles estão morrendo ou vivendo alguma desgraça. 

A historiadora Flávia conta que “Tão importante quanto a mensagem fílmica é o significado que cada espectador constrói e se o filme ajudou muitos gays a se sentirem representados na época, é um grande motivo para celebrar a realização do longa”.

O relacionamento conturbado de Jack e Ennis instigou discussões entre o casal [Imagem: Reprodução/IMDb]

Outra  discussão em torno do longa foi se teria relação com o assassinato de Matthew Shepard, crime que tomou a mídia dos Estados Unidos em 1998. O estudante de 21 anos da Universidade de Wyoming — no mesmo estado em que se passa o filme — foi amarrado em um poste em um campo esportivo e espancado até a morte por ser homossexual. O episódio foi remetido à cena na qual Ennis se lembra do assassinato de seu vizinho gay arrastado pelo pênis na rua até a morte. 

As polêmicas da produção e o sucesso de público também foram motivados por como Ang Lee tratou a homossexualidade junto à heteronormatividade. A abordagem fez com que sutilmente houvesse um atrito na ordem social, agradando um público que jamais havia visto um romance gay, diz Bruno Carmelo. O professor de cinema comenta que para a época o filme foi bom, mas é melhor ainda que as produções LGBTQIA+  não pararam por aí e puderam aumentar a subversidade de suas histórias. 

Já nos anos 2000 filmes como V de Vingança (V for Vendetta, 2006), Transamerica (2005) e Capote (2005) seguiram o exemplo da produção dirigida por Ang Lee. O Segredo de Brokeback Mountain também inspirou, com mais subversão, Pedro Almodóvar com Estranha forma de vida (Extraña forma de vida, 2023) e Ataque dos Cães (The Power of the Dog, 2021) por Jane Campion. O longa foi selecionado para preservação no Registro Nacional de Filmes, pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 2018, em função de sua potência, cultura, história e estética. 

O Segredo de Brokeback Mountain foi um filme para indústria de cinema ainda com seus conservadorismos. Mas, foi um ponto de partida para que outros filmes pudessem ser mais ousados e com uma linguagem queer, que não reproduza uma estética que sempre foi discriminatória com a comunidade, explica Bruno.

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